quinta-feira, 14 de março de 2024

MEMÓRIAS DA PÁSCOA QUE SERÃO SEMPRE DE HOJE!!!

 

Cabrito assado no Forno

Na Quaresma, no tempo antes da Páscoa, é altura de jejum: evita-se comer carne às sextas-feiras, por respeito a Jesus Cristo que foi crucificado numa sexta-feira. Mas o domingo de Páscoa já é dia de festa e ressurreição, voltando-se a comer carne como cabrito ou borrego, à imagem dos tempos antigos

Nos dias anteriores à Páscoa a água do rio lavava os cobertores, arejavam-se e perfumavam-se as casas com ramos de alecrim, limpavam-se as paredes, esfregavam-se os soalhos, substituíam-se os papéis que enfeitavam o rebordo dos armários da louça, ao mesmo tempo que se procedia à lavagem e renovação da palha dos colchões, enchiam-se, com a ajuda duma forquilha feita a partir de um ramo duma árvore. Areavam-se os tachos e panelas e tudo tinha de estar a brilhar para receber o Compasso. Do cheiro a rosmaninho, buxo e plantas que atapetavam a entrada das casas, do folar e da rosquilha acabado de cozer, que inundava a rua mal se abriam as portas, do sabor doce da jeropiga e do porto com que cada família recebia a comitiva da visita pascal, do som do sininho anunciando o percurso da cruz e da caldeirinha.

A excitação da época pascal começava no Domingo de Ramos. Sem fé e sem o mínimo conhecimento do significado dos rituais religiosos desta época, só me interessavam os ramos feitos com alecrim, rosmaninho, buxo e oliveira. Vestido de domingueiro, eu percorria a longa rua da aldeia, do cruzeiro de São Sebastião até à ao cruzeiro de Santo Amaro. Aí, juntava-me aos miúdos da minha criação, uns com singelos ramos, outros com ramos maiores cumpríamos escrupulosamente os ritos da missa do Domingo de Ramos no largo da praça, onde o padre terminava abençoando-os com água benta no largo da praça.

O dia de Páscoa amanhecia bem cedo. As crianças andavam numa euforia! Vestidas com as suas melhores roupas, era nesta altura que estreavam roupa nova, mesmo os mais pobres, cujos pais tinham poupado uns tostõeszitos para a ocasião. Como toda a gente, eu acreditava na diferença entre água benta e água vulgar, pela pia de pedra onde se encontrava à entrada da igreja, ou outros recipientes onde se guardava para mais tarde. Tal como acreditava que era sangue de Cristo que o padre bebia por um copo de prata, e o corpo de Cristo que ele dava a comer em forma de hóstias a todos aqueles a quem a confissão limpara a alma.


A  Pia  da Igreja

A pequena sineta, nas mãos de uma jovem criança ou de um adulto, já se fazia ouvir de mansinho pelas ruas da aldeia e aquele som era uma música melodiosa que entoava nos ouvidos dos meninos. A alegria era contagiosa! – Já lá vem…já lá vem…, gritavam eles a plenos pulmões numa grande euforia.

O primeiro a entrar nas casas era o homem que transportava a caldeira da água benta e que aspergia a todos numa bênção desordenada. Ao mesmo tempo outro elemento da comitiva lia uma pequenina passagem da Bíblia, muito rapidamente, à qual ninguém prestava atenção. Depois entrava o homem que transportava a cruz e todos se ajoelhavam dando o crucifixo a beijar a todos os presentes, repetindo “Corpo de Cristo”, A seguir vinha o que transportava o saco do dinheiro, não poderia faltar, claro, todos contribuíam de acordo com as suas possibilidades. Lá fora o sineiro não parava de tocar.

A nossa tarde do Domingo de Páscoa era passada neste caminhar, entrar e sair das casas. Mas era o Domingo de Páscoa que me enchia de alegria. Adorava percorrer a aldeia atrás da pequena comitiva de acólitos de Cristo. Os breves minutos que o Compasso permanecia dentro de portas variava de casa para casa. Era nesta altura que o tempo media e separava os estratos sociais.


O Folar da Páscoa

Enquanto nas casas dos pobres o Compasso mal entrava já estava de saída, nas casas dos mais abastados havia uma mesa coberta por uma bonita toalha branca de linho e, em cima, por regra, uma garrafa de vinho do Porto assim como folares, rosquilhas, pão-de-ló, bolos e amêndoas, para acompanhar a pequena conversa de circunstância. Não faltava também um pequeno prato onde uma nota bem à vista ajudava a purificar a casa.

Assim recordo a Páscoa, muitos que já partiram para a terra do “nunca mais de lá voltam”, o domingo do sininho, da caldeirinha e da Cruz, o dia de “beijar o Senhor”, as ruas perfumadas com cheirinho de alecrim e outras flores, as casas com o perfume do folar e da rosquilha cozido e dourado no forno a lenha. Era assim a visita pascal, naqueles dias, que passava num ápice como uma rajada de vento.

A minha aldeia era uma terra de mineiros e, naquela altura, poucos anos após a segunda Guerra Mundial, o trabalho nas minas começava a escassear. As dificuldades surgiam, a fome era muita e as doenças, como por exemplo a tuberculose e sarampo atingiam praticamente todas as casas. Mas não havia preocupação nenhuma em beijar a Santa Cruz. Se a fé movia montanhas porque não poderia afastar as doenças?


As Amêndoas da Páscoa

Ou seria pura e simples ignorância. Ainda hoje a Páscoa representa, para mim, um tempo de renovação, um tempo de arejar as ideias após o longo e obscuro inverno que a precede. É urgente eliminar do pensamento tudo que seja negativo para que não haja qualquer resquício que atrapalhe o caminho.

Tão importante que se passem a escrito essas evocações de algo que se vai perdendo e consolidava a comunidade. Neste tempo de Páscoa, percebo, ano após ano, que eu posso ter saído da aldeia, mas a aldeia não saiu de mim.

Ou seria pura e simples ignorância. Ainda hoje a Páscoa representa, para mim, um tempo de renovação, um tempo de arejar as ideias após o longo e obscuro inverno que a precede. É urgente eliminar do pensamento tudo que seja negativo para que não haja qualquer resquício que atrapalhe o caminho.

Tão importante que se passem a escrito essas evocações de algo que se vai perdendo e consolidava a comunidade. Neste tempo de Páscoa, percebo, ano após ano, que eu posso ter saído da aldeia, mas a aldeia não saiu de mim.

Desejo boa Páscoa a todas as Famílias paz e felicidade!


Após a casa benzida,

O povo a cruz beijou,

Aleluia! Nova vida!

Cristo ressuscitou!


Blog Freixagosa













3 comentários:

  1. O texto é uma completa descrição duma Páscoa tradicional que, felizmente, ainda se vai conservando. Sabe bem, só de ler toda a sequência dos acontecimentos e imaginá-los, vendo a simplicidade e a devoção com que são encarados pelo povo.

    ResponderEliminar
  2. Aqui está um trabalho digno de registo.
    Nota-se trabalho de pesquisa, composição e o que é mais importante, a verificação presencial dos factos.
    Para quem desde menino viveu todos estes acontecimentos, sente-se reconfortado por ter um membro da família que tão bem os sabe reconstituir.
    Parabéns

    ResponderEliminar
  3. Parabéns Ilídio!
    Fizeste uma transcrição correta do que é a Páscoa na terra dos teus antepassados. O simbolismo que representa, para além da profissão de fé, o encontro e convívio de famílias, o retrato social da procura de melhores vidas e acabas com os prazeres de uma boa cozinha! Deixa-me dizer que, passados talvez cinquenta anos, me lembro do cabrito recheado, acompanhado de arroz de forno que fazia a tua mãe.
    Bem hajas por “saíres aos teus” e que as raízes se te não escapem da memória.

    Um abraço amigo

    ResponderEliminar