Não é de todo exagero referir que estas memórias extravasam o tempo, ao trazer o passado para o presente, pormenorizando histórias e narrativas de vida que se passaram. O leitor encontrará, nesta crónica, um valioso espólio etnográfico que vale a pena conhecer ou relembrar, uma homenagem merecida à minha aldeia de Argoselo e suas gentes, lendas e mitos, e paisagens de uma beleza inexplicável. Era o tempo em que sabíamos tomar conta de nós.
Cada um em equilíbrio com a sua natureza. Tempo em que não se
ficava em casa para não estragar as audiências na televisão, tempo em que
éramos pobres de quase tudo mas ricos de tempo, havia tempo para aprender a ser
humano e tempo para viver em ajuda mútua, este era o método mais avançado da
evolução das nossas qualidades que utilizávamos para viver e ajudar a viver.
Era o tempo em que estávamos, sem consumos obrigatórios. Renda da casa,
Água, Luz, Telefone e Gás. Sem pensar em vestir muito caro. Sou do tempo
onde cada um sabia da bisbilhotice que trazia união, era assim que se
comunicava em que cada um procurava só a informação necessária à acão. Não era
melhor. Não seria pior. Mas era desta maneira em Argoselo, e noutras aldeias
vizinhas não seria diferente. Nessa altura sentíamos-nos confinados a este modo
de estar, era como se nos tivessem raptado e nos afastassem de todas as coisas
boas ou más que estavam a acontecer no mundo, à espera que o tempo passasse e
nos levassem até à civilização.
Como toda a gente gosta de férias depois de um ano de trabalho, cada qual as planeou de várias formas, uns escolhem a praia, outros preferem o lazer, outros vão viajar para conhecerem outros países e outros naturalmente a descansar juntos e passar os dias com a família. Certamente não serei diferente dos outros! Por norma vou sempre passa-las à minha terra, onde me sinto bem com as minhas gentes.
Todas as tardes saio de Bragança e vou dar uma volta até à Vila. Sento-me no banco do jardim dos peliqueiros, frente ao banco reservado dos habituais inquilinos. Como gosto de os ouvir falar! Com um olho vendo quem passa e outro na conversa, enquanto se vai mastigando uns tremoços, e ver a desconfiança com que olham para cada carro que passa "estes são estrangeiros, devem ir para Miranda ou Vimioso".
Da forma diferente como vivem o tempo, parece que
estão ali desde sempre, que são velhotes desde sempre, que se entretêm com as
mesmas coisas desde sempre: dar dois dedos de conversa, comentar a vida alheia,
e estar a tento a quem passa. Imagino que seja assim em todas as aldeias.
"Aqui não se passa nada, deve aborrecer-se, não?", perguntou-me um
deles. Disse-lhe que não, que não me aborrecia nada. Que na verdade, gostava
mesmo muito de aqui estar, que me sabia bem este ritmo e esta despreocupação,
talvez porque sei que é por um tempo limitado, que a minha vida não é assim
todos os dias esta calmaria.
É mesmo verdade que aqui não se passa nada. A maior agitação está guardada
para as manhãs, quando o carro do peixe do pão ou da fruta entram pela aldeia a
buzinar desenfreadamente logo às seis sete e tal da manhã. Depois do mata-bicho
lá vão eles para o banco do costume para que o tempo passe com a ladainha de
sempre, ver quem passa e estar atento a tudo em seu redor até que chegue a hora
do almoço, depois bem saciados, dorme-se a sesta, volta-se de novo para a
rua, e é esta a rotina de quem já deu tudo o que tinha a dar e não pode fazer
mais nada. Já não há crianças a brincar na rua como havia no meu tempo,
cresceram e foram fazer a vida delas para outros lugares.
Ainda me lembro de sermos uns 20 a jogar às escondidas nas noites de Verão,
até às tantas, nessa altura não havia telemóveis, playstation, tablet e
computadores, éramos felizes à nossa maneira.
Poucas são as vezes que dou um passeio às noites pela Vila com o Ramiro meu
irmão, porque a saúde não me permite, mas quando saio já não é como noutros
tempos, não se vê praticamente uma alma. Não há gente nova, só velhotes, e
esses deitam-se cedo. No Inverno ainda é pior.
Já houve oito ou nove cafés e outros tantos comércios. Agora estão dois ou
três cafés abertos. É assim que hoje o comércio da aldeia hoje Vila se resume,
praticamente a isto. São os sinais dos tempos...
Ilídio Bartolomeu
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