terça-feira, 15 de junho de 2021

AS CEIFAS (SEGADAS)

As colheitas, como as segadas, eram na verdade uma festa, logo bem cedinho até à noite. (Hoje já não são bem assim)

A foice, como o próprio nome indica, destinava-se a ceifar, isto é a cortar. As dedeiras, por norma de cabedal revestiam apenas dois dedos, aqueles que teriam mais probabilidade de virem a ser atingidos pela foice (os dois mais pequenos da mão esquerda) num qualquer momento de descuido ou de cansaço.

Os cantos transmontanos constituem umas das mais profundas e originais expressões da música regional portuguesa. E para bem tratar os segadores, havia o “desjejum”, logo bem cedo, ao princípio do trabalho; aí pelas dez horas da manhã, depois de um trabalho de cerca de quatro horas bem rendosas, não faltava quem apresentasse uma merenda especial.

O amo da segada vai fazendo os seus cálculos, preocupado com o decorrer das horas e o número de terras para segar, porque não lhe agradava que o trabalho ficasse para dois ou mais dias. E a dona de casa tinha de olhar para as suas tarefas, consideradas como jornada longa e preocupante, porque os segadores eram respeitados nesta festa de ano, em que é bem patente a alegria de meter a fouce na seara, apertar carinhosamente os “molhos de espigas” e abraçá-los com dedicado amor ao fazer os “molhos” e apertá-los com as dedeiras.

Todo o santo dia se cantavam as “Cantigas da Segada”, escolhidas a dedo pelos ranchos, pela norma do tradicional, desde o amanhecer até à noitinha. O dia era longo, dos maiores do ano. Estes cantos entoados durante as segadas, duma forma arrastada e vigorosa, como é próprio destes homens e mulheres entoado alternadamente. A voz masculina inicia numa textura particularmente aguda, a voz feminina que, adotando um registo médio, própria para cantar no campo, incentivam todo o rancho a cantar.

Pela uma hora da tarde vinha à “faceira” a dona com os grandes cestos transportados pelo burro ou macho. Eram pelo menos duas ou três iguarias que se apresentavam com bons pedaços de fumeiro, vitela assada ao calor do lume da lareira, bem temperado e o respetivo  bacalhau frito.

Os trabalhadores, principalmente na minha infância mais recuada comiam todos do mesmo recipiente que era colocado no chão, em cima de uma toalha que por sua vez era colocada em cima de uma manta de trapos embora cada um com uma colher individual e o mesmo acontecia com o garfo. Por norma comia-se com o garfo ou a colher na mão direita e por norma na mão esquerda segurava-se e comia-se uma fatia de pão.

E como os dias de Junho – Julho são como anos, não faltava a merenda caprichada pela parte da dona de casa, para sustentar o dispêndio de energias de quem aguentava toda a sesta, sem descanso, alagado em suor.

Vinho não faltava, andava sempre na mão do amo  em cabaça ou bota espanhola para no começo de cada novo sulco matar a sede a todos os que precisassem; e para que as coisas corressem sempre pelo melhor.

Regra geral era no final ou começo de cada novo par de regos que os trabalhadores se hidratavam bebendo água ou menos frequentemente vinho. Na altura da ceifa o calor aperta e, água é melhor que vinho.

É de referir que o sistema usado na segada, para se compreender melhor o esforço de todos e de cada um: Cada segador levava três sulcos de pão. Às mulheres pertencia-lhes levar dois. Para não baterem com a fouce no vizinho da esquerda, a segada era orientada estrategicamente, pondo à esquerda do grupo de segadores os mais cuidadosos, para irem depois todos um pouquinho recuados em relação uns aos outros. Os mais valentes e desenvoltos davam ao grupo a velocidade do andamento, e todos deviam tentar acompanhá-los, naquela como que fila indiana.

Cada trabalhador protegia-se do sol com chapéus de palha seguros ao queixo por fitas ou elásticos e usavam, às vezes, lenços ao pescoço. Estes lenços destinavam-se a limpar o suor que, com o avançar do dia e o trabalho, ia surgindo por todo o lado sendo mais visível principalmente na cara e no pescoço.
Os homens recebiam mais dinheiro que as mulheres e por norma executavam tarefas mais pesadas, embora por vezes também ceifassem.

Na verdade , a ceifa é trabalho algo árduo e duro. É preciso ter boa têmpera, estar habituado a suportar o calor de brasa que cai do céu de chumbo para aguentar esse trabalho, essa luta heroica do homem com a terra.

À noite, comia-se a ceia, já em casa e os trabalhadores iam dormir para descansar e recuperar forças para o dia seguinte. No caso de searas menores os ranchos eram formados em parceria que basicamente quer dizer: trabalho para ti e tu para mim a seguir.

No meu tempo de criança,  os campos que já estavam segados, ia-se ao rebusco da espiga e de vez enquanto observava a peregrinação diária dos segadores, e ia tomando conta de alguns desabafos que se ouvia dizer aos donos das searas: Um ano à espera entre inúmeros e contingentes perigos, ao desprender dos sentimentos de funda gratidão para com o Senhor Deus do céu e da terra que tudo nos dá, e que nunca nos falte o pão e o caldo.

Hoje em dia as coisas são muito diferentes e mais fáceis já que os meios mecânicos não só segam como malham e atam o cereal em sacos. Tempos modernos que trazem sempre um pouco de nostalgia para todos aqueles que se lembram perfeitamente do calor infernal que era uma segada.

Quem planta, colhe. E a colheita, é sempre maior que a plantação!

Ilídio Bartolomeu


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