quinta-feira, 18 de setembro de 2014

MEMÓRIAS DO ÚLTIMO PELIQUEIRO DE ARGOSELO




Chamam peliqueiro àquele que prepara ou vende pelicas (peles, especialmente de cabrito, curtidas e preparadas). Chamam peliqueiros aos habitantes de Argozelo, localidade do concelho de Vimioso, no distrito de Bragança.

E diga-se, a bem da verdade, que justiça foi feita! Não tivesse sido aquela jovem vila, outrora aldeia, terra de peliqueiros: há cerca de 60 anos, eram mais de 350 os homens e rapazes de Argozelo que faziam da compra e venda de pelicas o seu ganha-pão. Mas, apesar de ter atraído centenas de pessoas, hoje, a atividade está praticamente extinta. E, em terra de peliqueiros, resta agora um. Mas de gema e com orgulho! Com ele guarda memórias de aventuras e desventuras, que recorda como se tivessem acontecido ontem. A ele, homem dos seus 72 anos, move-o ainda a vontade de não deixar que a atividade “morra”
Tinha Humberto Luís do Fundo 10 anos, “pouco mais ou menos”, quando decidiu seguir as pisadas do pai e se tornou peliqueiro. “Não era um negócio rentável, mas era o que havia”, justifica aos 72 anos. Ele com um “burrico”, o pai com uma mula, foi à procura de peles que percorreram, por atalhos, quilómetros e quilómetros, que os levavam às mais recônditas localidades dos concelhos de Bragança, Macedo de Cavaleiros e Mirandela. “Corríamos de aldeia em aldeia e torneávamos os povos. Procurávamos as peles, mas os pastores que as tinham também vinham ter connosco para acertarmos negócio”, conta. Na altura cada peliqueiro tinha as suas freguesias e os seus conhecimentos (pastores e cortadores e taberneiros). A “rota” era herdada de pais para filhos.
A procura das pelicas era feita todo o ano, fosse Verão ou Inverno. Mas era o Inverno rigoroso e as fortes chuvadas que mais receios causavam. Desde logo porque era necessário enfrentar um “grande obstáculo”: passar o rio Sabor. “Muitas vezes, a água quase que nos levava os animais. Um dia, à entrada do rio, o burro caiu e eu caí com ele, se não era o meu primo a água tinha-me levado”, conta.
Entre a partida de Argozelo, a “volta” às aldeias e o regresso à terra natal com as cargas de peles, passavam-se quatro dias. “Dormíamos por essas aldeias. Parávamos nas tabernas para comer e dormíamos nos palheiros que os taberneiros tinham”, recorda aquele que é hoje o último peliqueiro de Argozelo, acrescentando: “Eram tempos difíceis aqueles. Dinheiro não havia e as fomes eram como o dia”.
E, ligadas às dificuldades passadas, seguem-se outras recordações: “Eu comecei muito pobrezinho. Cheguei a ir a Vimioso a pé quatro vezes por semana. Ia com uma saca de peles às costas, com uns socos calçados e com um carolo [de pão] no bolso. Andava 40 quilómetros por dia e demorava cerca de três horas, tudo para ganhar duas coroas ou sete tostões. Não era nada, mas naquele tempo tudo valia a pena. Era trabalhar para comer”, justifica Humberto do Fundo, lembrando que, em Argozelo, só se fizeram quatro “fortunas” com as peles, que foram as dos negociantes que compravam aos que andavam por fora e que depois vendiam no Porto, Alcanena, entre outras localidades, para as fábricas de calçado, casacos, malas de senhoras. Quanto aos outros trezentos e tal, “nasceram pobres e pobres morreram”, comenta.atalhos encontrou trabalhos
Das inúmeras viagens que fez, das terras por onde passou, das gentes que conheceu e dos medos que enfrentou, Humberto do Fundo não se esquece. E quando lhe falam em recordações, as histórias são várias, mas há algumas que se sobrepõem. “Lembro-me bem de uma vez, tinha eu 25 anos, portanto estava casado há dois ou três, que vinha de mula desde Vimioso e, no meio do caminho, encontrei dois lobos... só os via a 10 metros. Era uma zona de pastores, mas na altura não estava lá ninguém. Vi-me sozinho e só pensava no que havia de fazer. Tirei duas ou três patas às peles e atirei-lhas, mas eles só cheiraram, mais nada. Depois... aquilo parece que foi a presença de Deus: eles retiraram do caminho, cada um para seu lado e deixaram-me passar sem se mexerem. Ao ir para casa só ia olhando para trás, para ver se me seguiam, e ia com bom medo, mas, graças a Deus, correu tudo bem”, conta Humberto do Fundo.
Como as memórias regressavam em força, o peliqueiro continua: “Outra vez, na ribeira de Pinelo, havia um pontão que ia coberto de água. Entrei para o lameiro em cima da mula para passar, mas chegámos à entrada do ribeiro e ela não passou. Qual não é o meu espanto quando no dia seguinte, quando a água tinha baixado, vi que a ribeira tinha um buraco com cerca de 1,5 metros de profundidade. Eu ali chorei e ainda hoje choro quando passo lá, porque podia ter sido a minha infelicidade. Se a mula avançava lá tinha ficado eu e a mula presos naquele buraco”, lembra, visivelmente emocionado.
Mas são também as dificuldades de outrora que muito orgulho lhe dão hoje: por ter conseguido lutar e vencer “nesta vida”. A vender peles sustentou uma família e a vender peles moldou o carácter: seguro de si e sem medo do trabalho.

25 de Abril revoluciona atividade

Os peliqueiros mantiveram-se com força na atividade até ao 25 de Abril de 74. Dada a revolução, muitos foram os jovens que emigraram. Naquela aldeia transmontana, tal como aconteceu em muitas outras, ficaram os mais velhos. Depois, esses foram morrendo e a atividade foi-se perdendo. Atualmente há um peliqueiro em Mirandela, outro no Porto, outro em Carviçais, outro em Macedo de Cavaleiros e o de Argozelo.
Mas, com a ida de alguns peliqueiros, mais espaço ficou para outros. “Deixámos de ser tantos e começámos a trabalhar mais à vontade. As coisas evoluíram e aí já se começou a ganhar mais algumas coroas”, observa Humberto do Fundo, acrescentando: “Depois de se deixarem os burros, ainda comprei uma motorizada de três rodas e depois comecei com as carrinhas, hoje posso dizer que já tive à volta de 10 ou 15 carros”, comenta.
Humberto do Fundo diz que foi a vontade de “querer subir” que o levou a comprar mais peles e a “meter-se” nos matadouros de Vimioso e de Miranda.
No entanto, depois da ascensão, teme-se que a atividade entre em decadência. O sucessivo encerramento de fábricas do país está a preocupar os peliqueiros. “Se o negócio das peles assim continua, está-me a parecer que desaparece. As fábricas estão a fechar e alguns comerciantes vão comprar para o estrangeiro mais barato”, alerta o último peliqueiro de Argozelo, comentando: “O meu filho está interessado em seguir o negócio, mas já me disse que assim terá que se deixar. A coisa está em crise. Se hoje a pele vale dois euros, amanhã só nos pagam um. Assim não dá para se aguentar”. Mais uma vez a crise... Triste sina para a atividade e triste antevisão para Humberto do Fundo, que confessa: “O que mais me custava era que o negócio morresse nas minhas mãos”.



Jornal Nordeste

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