Chamam peliqueiro àquele que prepara ou vende pelicas (peles, especialmente
de cabrito, curtidas e preparadas). Chamam peliqueiros aos habitantes de
Argozelo, localidade do concelho de Vimioso, no distrito de Bragança.
E diga-se, a bem da verdade, que justiça foi feita! Não tivesse sido aquela
jovem vila, outrora aldeia, terra de peliqueiros: há cerca de 60 anos, eram
mais de 350 os homens e rapazes de Argozelo que faziam da compra e venda de pelicas
o seu ganha-pão. Mas, apesar de ter atraído centenas de pessoas, hoje, a atividade
está praticamente extinta. E, em terra de peliqueiros, resta agora um. Mas de
gema e com orgulho! Com ele guarda memórias de aventuras e desventuras, que
recorda como se tivessem acontecido ontem. A ele, homem dos seus 72 anos,
move-o ainda a vontade de não deixar que a atividade “morra”
Tinha Humberto Luís do Fundo 10 anos, “pouco mais ou menos”, quando decidiu
seguir as pisadas do pai e se tornou peliqueiro. “Não era um negócio rentável,
mas era o que havia”, justifica aos 72 anos. Ele com um “burrico”, o pai com
uma mula, foi à procura de peles que percorreram, por atalhos, quilómetros e
quilómetros, que os levavam às mais recônditas localidades dos concelhos de Bragança,
Macedo de Cavaleiros e Mirandela. “Corríamos de aldeia em aldeia e torneávamos
os povos. Procurávamos as peles, mas os pastores que as tinham também vinham
ter connosco para acertarmos negócio”, conta. Na altura cada peliqueiro tinha
as suas freguesias e os seus conhecimentos (pastores e cortadores e
taberneiros). A “rota” era herdada de pais para filhos.
A procura das pelicas era feita todo o ano, fosse Verão ou Inverno. Mas era o
Inverno rigoroso e as fortes chuvadas que mais receios causavam. Desde logo
porque era necessário enfrentar um “grande obstáculo”: passar o rio Sabor.
“Muitas vezes, a água quase que nos levava os animais. Um dia, à entrada do
rio, o burro caiu e eu caí com ele, se não era o meu primo a água tinha-me
levado”, conta.
Entre a partida de Argozelo, a “volta” às aldeias e o regresso à terra natal
com as cargas de peles, passavam-se quatro dias. “Dormíamos por essas aldeias.
Parávamos nas tabernas para comer e dormíamos nos palheiros que os taberneiros
tinham”, recorda aquele que é hoje o último peliqueiro de Argozelo,
acrescentando: “Eram tempos difíceis aqueles. Dinheiro não havia e as fomes
eram como o dia”.
E, ligadas às dificuldades passadas, seguem-se outras recordações: “Eu comecei
muito pobrezinho. Cheguei a ir a Vimioso a pé quatro vezes por semana. Ia com
uma saca de peles às costas, com uns socos calçados e com um carolo [de pão] no
bolso. Andava 40 quilómetros por dia e demorava cerca de três horas, tudo para
ganhar duas coroas ou sete tostões. Não era nada, mas naquele tempo tudo valia
a pena. Era trabalhar para comer”, justifica Humberto do Fundo, lembrando que,
em Argozelo, só se fizeram quatro “fortunas” com as peles, que foram as dos
negociantes que compravam aos que andavam por fora e que depois vendiam no Porto,
Alcanena, entre outras localidades, para as fábricas de calçado, casacos, malas
de senhoras. Quanto aos outros trezentos e tal, “nasceram pobres e pobres
morreram”, comenta.atalhos encontrou trabalhos
Das inúmeras viagens que fez, das terras por onde passou, das gentes que
conheceu e dos medos que enfrentou, Humberto do Fundo não se esquece. E quando
lhe falam em recordações, as histórias são várias, mas há algumas que se
sobrepõem. “Lembro-me bem de uma vez, tinha eu 25 anos, portanto estava casado
há dois ou três, que vinha de mula desde Vimioso e, no meio do caminho,
encontrei dois lobos... só os via a 10 metros. Era uma zona de pastores, mas na
altura não estava lá ninguém. Vi-me sozinho e só pensava no que havia de fazer.
Tirei duas ou três patas às peles e atirei-lhas, mas eles só cheiraram, mais
nada. Depois... aquilo parece que foi a presença de Deus: eles retiraram do
caminho, cada um para seu lado e deixaram-me passar sem se mexerem. Ao ir para
casa só ia olhando para trás, para ver se me seguiam, e ia com bom medo, mas,
graças a Deus, correu tudo bem”, conta Humberto do Fundo.
Como as memórias regressavam em força, o peliqueiro continua: “Outra vez, na
ribeira de Pinelo, havia um pontão que ia coberto de água. Entrei para o
lameiro em cima da mula para passar, mas chegámos à entrada do ribeiro e ela
não passou. Qual não é o meu espanto quando no dia seguinte, quando a água
tinha baixado, vi que a ribeira tinha um buraco com cerca de 1,5 metros de
profundidade. Eu ali chorei e ainda hoje choro quando passo lá, porque podia
ter sido a minha infelicidade. Se a mula avançava lá tinha ficado eu e a mula
presos naquele buraco”, lembra, visivelmente emocionado.
Mas são também as dificuldades de outrora que muito orgulho lhe dão hoje: por
ter conseguido lutar e vencer “nesta vida”. A vender peles sustentou uma
família e a vender peles moldou o carácter: seguro de si e sem medo do
trabalho.
25 de Abril revoluciona atividade
Os peliqueiros mantiveram-se com força na atividade até ao 25 de Abril de 74.
Dada a revolução, muitos foram os jovens que emigraram. Naquela aldeia
transmontana, tal como aconteceu em muitas outras, ficaram os mais velhos.
Depois, esses foram morrendo e a atividade foi-se perdendo. Atualmente há um
peliqueiro em Mirandela, outro no Porto, outro em Carviçais, outro em Macedo de
Cavaleiros e o de Argozelo.
Mas, com a ida de alguns peliqueiros, mais espaço ficou para outros. “Deixámos
de ser tantos e começámos a trabalhar mais à vontade. As coisas evoluíram e aí
já se começou a ganhar mais algumas coroas”, observa Humberto do Fundo,
acrescentando: “Depois de se deixarem os burros, ainda comprei uma motorizada
de três rodas e depois comecei com as carrinhas, hoje posso dizer que já tive à
volta de 10 ou 15 carros”, comenta.
Humberto do Fundo diz que foi a vontade de “querer subir” que o levou a comprar
mais peles e a “meter-se” nos matadouros de Vimioso e de Miranda.
No entanto, depois da ascensão, teme-se que a atividade entre em decadência. O
sucessivo encerramento de fábricas do país está a preocupar os peliqueiros. “Se
o negócio das peles assim continua, está-me a parecer que desaparece. As
fábricas estão a fechar e alguns comerciantes vão comprar para o estrangeiro
mais barato”, alerta o último peliqueiro de Argozelo, comentando: “O meu filho
está interessado em seguir o negócio, mas já me disse que assim terá que se
deixar. A coisa está em crise. Se hoje a pele vale dois euros, amanhã só nos
pagam um. Assim não dá para se aguentar”. Mais uma vez a crise... Triste sina
para a atividade e triste antevisão para Humberto do Fundo, que confessa: “O
que mais me custava era que o negócio morresse nas minhas mãos”.
Jornal Nordeste
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