Venho pensado
muito na minha infância, não com saudade ou saudosismo e nem com desejo que
tudo tivesse sido diferente. Apenas tenho pensado. Pensado talvez para resgatar
as lembranças da criança que fui, que pude ser, que me deixaram ser. Tenho- me
esforçado para lembrar pequenos momentos que podem ter definido a
personalidade, os traumas, a visão de mundo e até o jeito que hoje lido com a
felicidade e com os momentos de frustração.
Alguns dias atrás, em conversa com amigos, abordávamos os lugares da nossa infância, fiquei com a ideia que a pó do tempo tinha acabado por apagar quase tudo. Inconformado, tomei a coragem de percorrer em pensamento, os lugares e caminhos por onde a minha infância se tinha passado, na esperança de me reavivar aquele tempo…
A essência dos lugares,
lá estão. Tudo o resto é um outro mundo que já nada me diz, nada tem a ver
comigo. Faltam as pessoas, aquelas pessoas, para que tudo aquilo faça algum
sentido. A oportunidade da passagem pelos lugares incitava-me à memória. Mas a
memória agora prega-nos partidas. Hoje a minha infância, apenas guardo
recordações dispersas, divididas faltando-lhes o fluir dos dias. Tudo me parece
já tão longínquo tão distante! As gavetas da memória, outrora tão arrumadas
desapareceram com o tempo. Apenas sobraram pequenas impressões sem nexo,
desencontradas umas das outras. Era este todo o meu mundo que me rodeava,
moldado com palha, água e terra que decorriam as minhas brincadeiras, feitas de
diabruras que pregávamos uns aos outros.
RUA PADRE CRUZ |
Como de verão a água na aldeia
era pouca, o tanque público era pequeno para tanta gente e a água era também
pouca, as mulheres, não tendo onde lavar a roupa, às vezes, juntavam-se cinco
ou seis vizinhas em direção às ribeiras. Eram tardes de verão maravilhosas
passadas no fradal, no ribeiro dos inverniços e no rio maçãs.
IGREJA MATRIZ |
Estávamos no rio…. Era
uma festa, de gritos e pulos. Só então, muito depois, ao fundo da curva de um
carreiro é que elas apareciam de bacias à cabeça e mãos à cintura, caminhavam
apressadas tagarelando umas com as outras, bem-dispostas para um dia árduo de
trabalho à hora do calor. Como relatar este doce prazer de ver as nossas
mães contentes, todas suadas pelo calor e pelo esforço de esfregar a roupa,
conversando animadamente umas com as outras? E quando cantavam? Que vozes que
elas tinham! Foram poucas ou quase nenhumas as canções que me ficaram
na memória, mas, passados que são tantos anos ainda não encontrei paz de
alma e deslumbramento semelhantes, como quando sentado todo nu em cima duma
pedra lavada pelas águas de inverno, sentia ao escutá-las. Eram vozes finas
melodiosas que cantavam coisas da terra, do trabalho dos seus homens, os seus
amores, ciúmes, ódios… Como tudo isto era belo!
![]() |
ANTIGA ESCOLA HOJE POSTO DA G.N.R. |
E, assim, lavada toda a
roupa, sentados na erva, à volta das toalhas estendidas no chão só se viam
rostos a escorrer suor, rubros, queimados pelo sol comendo sofregamente, com
prazer. Mas, depois da barriga cheia, ó pernas para que te quero!
Brincávamos com tudo quanto encontrássemos e nos viesse à cabeça. Mas, o nosso
jogo preferido, era o jogo das escondidas, realmente cada qual procurava o
sítio mais disparatado para se esconder. Os meus preferidos eram as rochas.
Pequeno e arisco, de olhar trocista e malandro, corria que só visto, quase nunca
davam por mim.
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RIO MAÇÃS |
Estava terminado mais um
dia passado no rio. O sol já se começava a pôr. A nossa alegria ainda
permanecia. Mas o que se sentia mais nesses momentos, era pena de o dia ter
corrido tão depressa. E tristonhos por termos de subir aquela encosta tão
íngreme, quando estávamos tão cansados e exaustos, era bem um autêntico
calvário. As pobres das nossas mães coitadas, estafadas ainda tinham de nos
arrastar: a uns pelas mãos, a outros dizendo-lhes que se agarrassem às saias, ora
repousando aqui, ora descansando acolá, chegávamos finalmente a casa. Comíamos
uma sopa de couves com um carolo de pão e depois, cama. Dormia como um anjo,
dizia minha mãe.
Atualmente alguns
jogos/brincadeiras da minha infância estão esquecidos e estagnados no tempo,
pois a tecnologia acabou por interferir um pouco nesse esquecimento e claro as
próprias pessoas também fazem por isso. Andamos tão focados no trabalho e na
rotina, que só queremos algum descanso e acabamos por não ter paciência ou
tempo para brincar com os mais pequenos. Nos dias de hoje, não sei se na escola
ainda fazem algumas brincadeiras das que vou referir, tais como o jogo da
macaca e o jogo das cruzes, enfim…
RIBEIRO DA ESPADANA |
O convívio com os amigos
e brincadeiras divertidas em que o nosso tempo era ocupado com sorrisos,
gargalhadas e muitas histórias por contar. Por meio do jogo, abarcava o mundo à
minha volta, aprendia regras, legava habilidades físicas como: correr, pular,
aprender a ganhar e a perder. O brincar também desenvolvia a aprendizagem da
linguagem e a habilidade motora.
As brincadeiras adequavam-se
à minha conceção, brincava por necessidade e era fundamental ao meu
desenvolvimento com o uso da imaginação em ação. O brincar desempenhava um
papel importante na socialização com os demais, permitindo-nos aprender a
partilhar, cooperar, comunicar e a relacionar fazendo prosperar o respeito pelo
outro bem a autoestima, tudo resumido aprender brincando.
Na interação, os adultos
sempre tinham ensejo de nos ajudar na elaboração das inquietações que surgiam durante
a brincadeira, bem como enriquecer e estimular a nossa imaginação,
despertando-nos ideias e questionando-nos para descoberta de
soluções. Usando apenas a imaginação, eu conseguia resolver os mais
variados tipos de situações. Nunca tive brinquedos, eu inventava os meus
próprios, com carrinhos de linhas, tábuas, arame e cordel. Bastava uma
pedrinha para o mundo se transformar. É bom recordar e reviver o que em
tempos já nos fez feliz :)
O BURRO A PASTAR |
Por isso, estou
resgatando tudo de bom que tive para me abraçar e me perdoar hoje, ser feliz
hoje, agradecer o hoje, e como crianças costumam fazer, viver o hoje.
Com o passar do
tempo, percebi que a vida de cada um acabou tomando um rumo diferente. Rumo que
o próprio destino se encarregou de traçar. O cotidiano foi e é sempre a luta
pela sobrevivência. Trabalhar e se ocupar, preocupar-se com o futuro. Então
aqueles amigos que fiz durante a infância, aos poucos foram se distanciando...
E cada vez mais, até que nunca mais os vi com a mesma frequência de
antigamente.
Hoje tudo é tão
estranho. Nunca me imaginei adulto! Quer dizer, sempre imaginei, mas não achava
que me tornaria tão rápido. Vejo que alguns daqueles velhos amigos e colegas
são, pais de família. Aqueles que na época eu jurava que nunca teriam jeito por
serem tão bagunceiros, hoje tem ótimos empregos e vivem bem. Aqueles que eram os
mais tímidos e certinhos, que defendiam sempre o ponto de vista pessoal, hoje
são pais de um ou mais filhos.
Posso ser
triste ou celebrar ao contar a minha história. É uma tese de perspetiva. Sempre
olhei para as dificuldades como uma oportunidade de conseguir ou tornar algo
melhor. Descobri cedo demais o poder de usar a nossa imaginação para
transformar realidades. Lembro até hoje que toda a vez que sentia fome ou medo,
criava uma história na minha cabeça sobre como seria uma realidade diferente.
Vivia sonhando com o que não tinha e pensando no que precisaria fazer para ter.
MENINOS DO BAIRRO DE BAIXO |
A infância é o período no
qual edificamos as bases que sustentarão tudo o que virá depois. É também um
período mágico, onde o brincar e a imaginação constroem memórias afetivas
cheias de significado que irão perdurar por toda a existência.
Engana-se quem pensa que
o começo da vida é uma etapa que fica para trás depois que somos adultos. É um
ciclo vivo, que volta e se renova. Ecos da criança que fomos continuam a
repercutir dentro de nós no decorrer da vida...
Ilídio Bartolomeu
30-11-2019
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