Entre Quintanilha
e Vimioso é um território marcado geograficamente e historicamente, pelo Rio
Maças. Região serrana por natureza, apresenta um típico relevo ondulante,
proporcionando paisagens de distinta beleza, cheias de luz, vida e cor. Em
tempos passados, foram inúmeras as atividades praticadas e desenvolvidas neste
cenário de fronteira natural entre Bragança e Espanha.
Este facto foi visto por alguns populares locais
como um mundo de oportunidades, onde sempre existiu, trocas comerciais e laços
afetivos que ajudaram a criar uma identidade local.
O contrabando
foi a “arte” de comercializar às escondidas dos olhos da lei e dos governos,
respondendo às necessidades e dificuldades das gentes raianas.
Alimentos
básicos, foram transportados, pela calada da noite, de um lado ao outro da
fronteira. Para além dos bens matérias partilharam-se sentimentos,
conhecimentos e alimentaram-se sonhos.
Vivemos no
“tempo” das memórias. Atualmente, com o crescente interesse pelo património
cultural faz todo o sentido registar e estudar as “memórias” do contrabando
numa perspetiva de melhor entender a identidade local e contribuir para a
discussão do despovoamento do interior e especialmente nesta zona raiana. As
gerações que viveram o contrabando tradicional desapareceu, perdendo-se a sua
cultura e sentido de sobrevivência.
Era pelo silêncio
da noite que cinco ou seis homens de Argoselo, percorriam os trilhos mais
difíceis pelo mato e atravessavam as águas fronteiriças entre Nordeste e Espanha,
com os quilos de ‘carga’ às costas.
Nestas décadas
de 1930 e 1960, um conjunto de circunstâncias criou as condições ideias para se
gerar um intenso contrabando entre estas zonas fronteiriças.
Café, amêndoa,
farinha, ovos, grão, feijão, açúcar, bacalhau entre outros víveres, eram
passados durante a noite para Espanha, que vivia as dificuldades da Guerra
Civil (1936-39) e posterior regime, do General Franco. De lá, vinham para um Nordeste
profundamente pobre e sem condições: tabaco, sapatos, alpergatas, perfumes,
roupa, isqueiros… e outros bens que dificilmente circulavam num país debaixo de
uma dura ditadura, o Estado Novo (1933-74)
E era assim, à
luz das estrelas e ao som dos animais da noite, que estes homens se aventuraram,
de forma intensa por mais de três décadas, para conseguirem fazer face às condições
difíceis da vida de então. Na região, trabalhava-se no campo ou nas Minas de
Argoselo e Coelhoso, outros emigraram. Mas mesmo alguns dos mineiros
encontravam no contrabando um complemento para a vida difícil que levavam. Em
todas as localidades raianas havia contrabandistas.
Entre as
décadas de 1930 e 1960, o contrabando fez parte destas gentes, como forma de
sobrevivência. E não há aldeia ou monte que não tenha histórias para contar.
Uma viagem
pelos montes e aldeias da região e dois dedos de conversa com as pessoas de
mais idade resulta em múltiplas histórias de outros tempos. De coragem, de
dureza e de medo. Os Marroeiros e o Maribum, contrabandistas já falecidos, eram
os mais conhecidos nesta atividade em Argoselo.
Nas combinações
secretas nas tabernas, onde se originavam e misturavam sentimentos, interesses
e sonhos, os contrabandistas que carregavam as sacas pesadas às costas, não transportavam
só mercadorias que passavam a fronteira, levavam sonhos, fantasias e a ambição
de uma vida melhor.
À espera do grupo num local discreto e recôndito (normalmente num
palheiro) já estava o “Patrão” e o angariador.
A agricultura é
um trabalho duro e pouco rentável; sem o contrabando, a vida seria muito mais
difícil. Era assim nos anos 60, em Trás-os-Montes. O contrabando era normal,
praticado por muitos, mas só alguns tinham por vez o aval comprometido das
próprias autoridades. Portugal estava sob a ditadura de Salazar e as
fronteiras estavam encerradas. Sob chuva e frio, tudo era possível, mas não sob
neve e gelo.
Ás vezes eram apanhados,
os bens eram confiscados, e não ganhavam um tostão. O mesmo risco corriam os
espanhóis com os Carabineiros que atravessassem a fronteira em direção a Portugal,
invariavelmente na posse de bacalhau e café, os principais bens de contrabando
no sentido Espanha-Portugal. Ir e voltar podia levar toda a noite e no outro dia era de trabalho no campo. Este era um
esforço que faziam a troco de bom dinheiro. Era um crime, é certo, mas não era
um pecado.
Por vezes,
contrabandistas e elementos da Guarda Fiscal (um corpo de força pública
organizado militarmente para o serviço de fiscalização, “eram como o cão e o
gato” melhor dizendo: os carrascos destes homens fora da lei.
Hoje, todos
aqueles que "passavam" mercadorias para Espanha têm mais de 75 anos.
Alguns têm mesmo muito mais de 85. Consideram que apesar da abertura das
fronteiras ter sido benéfica, todas as pessoas ficaram mais pobres. A região
mantém-se fiel à pouca agricultura, e os rendimentos dos seus habitantes fiéis
à legalidade. O contrabando existe ainda nas memórias dos mais velhos, mas o
seu rasto perdeu-se. Mantêm-se os postos fronteiriços, abandonados,
vandalizados, os marcos de fronteira, e algumas das rotas que servem, hoje
em dia, outros propósitos.
Ilídio
Bartolomeu
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