domingo, 23 de maio de 2021

CRÓNICA DE UMA ALDEIA TRANSMONTANA!

Não é de todo exagero referir que estas memórias extravasam o tempo, ao trazer o passado para o presente, pormenorizando histórias e narrativas de vida que se passaram. O leitor encontrará nesta crónica, um valioso espólio etnográfico que vale a pena conhecer ou relembrar, lendas, mitos e paisagens de uma beleza  singular da Aldeia que me viu nascer.

 É verdade que muito tem sido apontada como a aldeia do "fim do mundo", "atrás do sol-posto", "tradicionalista" "tolerante". Por um lado ainda bem porque é uma boa maneira de dizer a quem não conhece esta parte de Portugal, que dê cá "um saltinho".

Nasci, cresci e estudei na aldeia até aos dez anos. A escola começava às nove da manhã e terminava às três da tarde. Éramos muitos. Somando as seis turmas seríamos perto de 140, em três salas. Acredito que aprendemos lá, principalmente com a professora Dona Maria Cepeda, as principais bases do conhecimento e de preparação para a vida. Mas os melhores ensinamentos chegavam depois das três. Mal ela dizia "podem sair", corríamos que nem desalmados,  que até se escutava em toda a aldeia.

Alguns iam para casa (tínhamos entre 6 e dez anos). Outros, como eu, era sagrado! Jogávamos desenfreadamente a bola pela estrada. Quando parávamos ao pé de alguns velhotes que estavam sentados  nos bancos da praça, a história era outra! Ou melhor, as histórias.

O “ti Marroeiro” era um homem forte em estatura e de uma vivência enorme. Tinha sido contrabandista e só isso já dava "pano para mangas" a muitas passagens mirabolantes que nós escutávamos sem pestanejar. As fugas aos carabineiros (Guardia Civil espanhola) e aos Fiscais portugueses embebedava-nos  o espírito da aventura. Imaginávamos tudo e entrávamos nas histórias contadas com uma mestria de avô paciente. O “ti Marroeiro” não tinha estudado mas conhecia a vida de cor. Ria-se quando tirávamos os livros das bolsas e lhe dizíamos que a terra era redonda. Não acreditava! A ida do homem à lua era, para ele, uma invenção dos Americanos.

Mas a maior invenção do “ti Marroeiro” foi ensinar-nos a jogar às cartas. Ensinou-nos tudo o que sabia. Os jogos todos. A bisca dos nove, o estenderete, todos inofensivos para crianças e também os jogos para adultos (era o que nós queríamos para nos sentirmos grandes), a "batota", o chincalhão e a sueca, principalmente a sueca que foi inventada por mudos, dizia, talvez para nos manter calados.

O respeito pelas cartas todas do baralho e pelas outras do adversário era a essência para sabermos a mão de cada um e ir a jogo, sempre com astúcia, para ganhar o jogo. Ensinou-nos tão bem que no fim já lhe ganhávamos. Nunca esquecerei a paciência do “ti Marroeiro” como dos outros velhotes que estavam sentados com ele. Aqueles dias com eles foram uma verdadeira "escola" para nós.

Era o tempo em que sabíamos tomar conta de nós. Cada um em equilíbrio com a sua natureza. Tempo em que não se ficava em casa para não estragar as audiências na televisão, tempo em que éramos pobres de quase tudo mas ricos de tempo, havia tempo para aprender a ser humano e tempo para viver em ajuda mútua. Este era o método mais avançado da evolução das nossas qualidades que utilizávamos para viver e ajudar a viver.

Era o tempo em que éramos, estávamos, sem consumos obrigatórios, renda da casa, água, luz, telefone, gás, casa de banho e sem pensar em vestir muito caro. Sou do tempo onde cada um sabia da bisbilhotice que trazia união, era assim que se comunicava em que cada um procurava só a informação necessária à ação. Não era melhor - não seria pior - mas era desta maneira na minha aldeia, e noutras aldeias vizinhas não seria diferente. Nessa altura sentíamo-nos confinados a este modo de estar, era como se nos tivessem raptado e nos afastassem de todas as coisas boas ou más que estavam a acontecer no mundo, à espera que o tempo passasse e nos levassem até à civilização.

Está quase aí o tempo de férias e muita gente já está a planeá-las! Certamente vão ser diferentes dos outros anos! Por norma as pessoas iriam passa-las em vários países por esse mundo fora, mas a pandemia veio trazer muitos constrangimentos,  assim sendo, quem ganha é o nosso pais. Fazer férias lá fora, mas cá dentro… 

Aqueles que  ficam a passar o tempo nas suas próprias terras, juntam-se nos bancos espalhados pela aldeia e falam de tudo um pouco, e a desconfiança com que olham para cada carro que passa ("olha! estes são estrangeiros, devem ir para Miranda ou Vimioso"), da forma diferente como vivem o tempo parece que estão ali desde sempre, que são velhotes desde sempre, que se entretêm com as mesmas coisas desde sempre: dar dois dedos de conversa, comentar a vida alheia, estar atento a quem passa.

 Imagino que seja assim em todas as aldeias. Um dia tive a felicidade de estar presente quando um deles me  interroga; deve aborrecer-se com a nossa conversa, ou não? Disse-lhe que não, que não me aborrecia nada. Que, na verdade, gostava mesmo muito de aqui estar, que me sabia bem este ritmo e esta despreocupação. Talvez porque sei que é por um tempo limitado, que a minha vida não é assim todos os dias, esta calmaria.

É mesmo verdade que aqui não se passa nada. A maior agitação está guardada para as manhãs, quando o carro do peixe do pão ou da fruta entram pela aldeia a buzinar desenfreadamente logo às cinco seis sete da manhã. Depois pronto, não acontece mais nada. Contam-se os carros que passam, almoça-se, dorme-se a sesta, volta-se de novo para os bancos da rua, e é isto. Já não há crianças a brincar na rua como havia noutros tempos. Cresceram, foram fazer a vida delas para outro lugar qualquer. Não há muitos anos lembro-me de haver muitos jovens a jogarem às escondidas e à buxa nova nas noites de Verão, até às tantas. Não havia perigos, eram felizes. Hoje infelizmente já não é como noutros tempos, não se vê praticamente uma alma na aldeia.

 Não há gente nova, só velhotes, e esses deitam-se cedo. No Inverno ainda é pior. Na aldeia, já houve oito ou nove cafés e outros tantos comércios. Agora estão dois ou três cafés abertos. É assim que hoje o comércio da aldeia hoje Vila se resume, praticamente a isto.

Nada será como antes, mas ainda temos a chance de recomeçar, reinventar tudo o que um dia pensávamos que se tivesse perdido no tempo.

Ilídio Bartolomeu

 

2 comentários:

  1. Excelente texto. Também eu conheci essa aldeia. Também eu vivi aí até aos 10 anos. A munha professora foi a Alice Prado. Tenho imensas saudades do cheiro da palha molhada e das estevas que, em dias de chuva, inundam o ar com o odor inconfundível. Éramos realmente milionários porque éramos tão livres como a liberdade.

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    1. Uma das coisas mais belas da vida é olhar para o céu, contemplar uma estrela e imaginar que muito distante existe alguém olhando para o mesmo céu, contemplando a mesma estrela e murmurando baixinho: "Que Saudade".

      Obrigado Isabel

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