Não é de todo
exagero referir que estas memórias extravasam o tempo, ao trazer o passado para
o presente, pormenorizando histórias e narrativas de vida que se passaram. O
leitor encontrará nesta crónica, um valioso espólio etnográfico que vale a pena
conhecer ou relembrar, lendas, mitos e paisagens de uma beleza singular da
Aldeia que me viu nascer.
É verdade que muito tem sido apontada como a aldeia
do "fim do mundo", "atrás do sol-posto",
"tradicionalista" "tolerante". Por um lado ainda bem porque
é uma boa maneira de dizer a quem não conhece esta parte de Portugal, que dê cá
"um saltinho".
Nasci, cresci e
estudei na aldeia até aos dez anos. A escola começava às nove da manhã e
terminava às três da tarde. Éramos muitos. Somando as seis turmas seríamos
perto de 140, em três salas. Acredito que aprendemos lá, principalmente com a
professora Dona Maria Cepeda, as principais bases do conhecimento e de preparação
para a vida. Mas os melhores ensinamentos chegavam depois das três. Mal ela
dizia "podem sair", corríamos que nem desalmados, que até se escutava em toda a aldeia.
Alguns iam para
casa (tínhamos entre 6 e dez anos). Outros, como eu, era sagrado! Jogávamos
desenfreadamente a bola pela estrada. Quando parávamos ao pé de alguns velhotes
que estavam sentados nos bancos da
praça, a história era outra! Ou melhor, as histórias.
O “ti Marroeiro”
era um homem forte em estatura e de uma vivência enorme. Tinha sido
contrabandista e só isso já dava "pano para mangas" a muitas
passagens mirabolantes que nós escutávamos sem pestanejar. As fugas aos
carabineiros (Guardia Civil espanhola) e aos Fiscais portugueses embebedava-nos
o espírito da aventura. Imaginávamos
tudo e entrávamos nas histórias contadas com uma mestria de avô paciente. O “ti Marroeiro”
não tinha estudado mas conhecia a vida de cor. Ria-se quando tirávamos os
livros das bolsas e lhe dizíamos que a terra era redonda. Não acreditava! A ida
do homem à lua era, para ele, uma invenção dos Americanos.
Mas a maior
invenção do “ti Marroeiro” foi ensinar-nos a jogar às cartas. Ensinou-nos tudo
o que sabia. Os jogos todos. A bisca dos nove, o estenderete, todos inofensivos
para crianças e também os jogos para adultos (era o que nós queríamos para nos
sentirmos grandes), a "batota", o chincalhão e a sueca,
principalmente a sueca que foi inventada por mudos, dizia, talvez para nos
manter calados.
O respeito
pelas cartas todas do baralho e pelas outras do adversário era a essência para
sabermos a mão de cada um e ir a jogo, sempre com astúcia, para ganhar o jogo.
Ensinou-nos tão bem que no fim já lhe ganhávamos. Nunca esquecerei a paciência
do “ti Marroeiro” como dos outros velhotes que estavam sentados com ele. Aqueles
dias com eles foram uma verdadeira "escola" para nós.
Era o tempo em
que sabíamos tomar conta de nós. Cada um em equilíbrio com a sua natureza.
Tempo em que não se ficava em casa para não estragar as audiências na
televisão, tempo em que éramos pobres de quase tudo mas ricos de tempo, havia
tempo para aprender a ser humano e tempo para viver em ajuda mútua. Este era o
método mais avançado da evolução das nossas qualidades que utilizávamos para
viver e ajudar a viver.
Era o tempo em
que éramos, estávamos, sem consumos obrigatórios, renda da casa, água, luz, telefone,
gás, casa de banho e sem pensar em vestir muito caro. Sou do tempo onde cada um
sabia da bisbilhotice que trazia união, era assim que se comunicava em que cada
um procurava só a informação necessária à ação. Não era melhor - não seria pior
- mas era desta maneira na minha aldeia, e noutras aldeias vizinhas não seria
diferente. Nessa altura sentíamo-nos confinados a este modo de estar, era como
se nos tivessem raptado e nos afastassem de todas as coisas boas ou más que
estavam a acontecer no mundo, à espera que o tempo passasse e nos levassem até
à civilização.
Está quase aí o
tempo de férias e muita gente já está a planeá-las! Certamente vão ser
diferentes dos outros anos! Por norma as pessoas iriam passa-las em vários
países por esse mundo fora, mas a pandemia veio trazer muitos
constrangimentos, assim sendo, quem
ganha é o nosso pais. Fazer férias lá fora, mas cá dentro…
Aqueles que ficam a passar o tempo nas suas próprias
terras, juntam-se nos bancos espalhados pela aldeia e falam de tudo um pouco, e
a desconfiança com que olham para cada carro que passa ("olha! estes são
estrangeiros, devem ir para Miranda ou Vimioso"), da forma diferente como
vivem o tempo parece que estão ali desde sempre, que são velhotes desde sempre,
que se entretêm com as mesmas coisas desde sempre: dar dois dedos de conversa,
comentar a vida alheia, estar atento a quem passa.
Imagino que seja assim em todas as aldeias. Um
dia tive a felicidade de estar presente quando um deles me interroga; deve aborrecer-se com a nossa
conversa, ou não? Disse-lhe que não, que não me aborrecia nada. Que, na
verdade, gostava mesmo muito de aqui estar, que me sabia bem este ritmo e esta
despreocupação. Talvez porque sei que é por um tempo limitado, que a minha vida
não é assim todos os dias, esta calmaria.
É mesmo verdade
que aqui não se passa nada. A maior agitação está guardada para as manhãs,
quando o carro do peixe do pão ou da fruta entram pela aldeia a buzinar
desenfreadamente logo às cinco seis sete da manhã. Depois pronto, não acontece
mais nada. Contam-se os carros que passam, almoça-se, dorme-se a sesta,
volta-se de novo para os bancos da rua, e é isto. Já não há crianças a brincar
na rua como havia noutros tempos. Cresceram, foram fazer a vida delas para
outro lugar qualquer. Não há muitos anos lembro-me de haver muitos jovens a
jogarem às escondidas e à buxa nova nas noites de Verão, até às tantas. Não
havia perigos, eram felizes. Hoje infelizmente já não é como noutros tempos,
não se vê praticamente uma alma na aldeia.
Não há gente nova, só velhotes, e esses
deitam-se cedo. No Inverno ainda é pior. Na aldeia, já houve oito ou nove cafés
e outros tantos comércios. Agora estão dois ou três cafés abertos. É assim que
hoje o comércio da aldeia hoje Vila se resume, praticamente a isto.
Nada será como
antes, mas ainda temos a chance de recomeçar, reinventar tudo o que um dia
pensávamos que se tivesse perdido no tempo.
Ilídio
Bartolomeu
Excelente texto. Também eu conheci essa aldeia. Também eu vivi aí até aos 10 anos. A munha professora foi a Alice Prado. Tenho imensas saudades do cheiro da palha molhada e das estevas que, em dias de chuva, inundam o ar com o odor inconfundível. Éramos realmente milionários porque éramos tão livres como a liberdade.
ResponderEliminarUma das coisas mais belas da vida é olhar para o céu, contemplar uma estrela e imaginar que muito distante existe alguém olhando para o mesmo céu, contemplando a mesma estrela e murmurando baixinho: "Que Saudade".
EliminarObrigado Isabel