sábado, 22 de outubro de 2022

A HISTÓRIA DE UM MIGRANTE PARA FRANÇA...


Os anos 60 e início dos anos 70 são caracterizados por uma forte emigração portuguesa para a Europa, não só para trabalhar, mas, também, para fugir à guerra colonial

«A minha ida para França » é uma história de vida contada na primeira pessoa, Horácio Silva, recorda o «salto» para França no ano de 1963. Estava sempre a ouvir que por lá se ganhava muito dinheiro.

Para sair daqui era preciso ajustar com o «passador», dentro da complexa maquina do «salto» (assim se chamava a partida clandestina) o preço monetário a pagar, na altura em média era 10.000$00, porque o resto poderia custar muito mais.  Mas Horácio Silva sabia-o e não hesitava, a decisão de procurar outra maneira de ganhar o sustento da família era profícua… não havia outro caminho a seguir. Dava logo metade do dinheiro antes de sair, comigo levava uma fotografia e quando lá chegasse rasgava a fotografia ao meio, dava metade ao «passador» para entregar à família para poder receber o total do dinheiro.

Assim, com alguma roupa preparada, só o indispensável e alguma coisa para comer, parti da terra que me viu nascer pelo silêncio da noite; deixando para traz a melhor fortuna que tinha…mulher, filhos e família. Comigo, iam mais 6 pessoas. Saímos da aldeia em direção à Espanha. Fazia bom tempo caminhávamos só de noite e apanhámos chuva em Espanha.

A primeira noite chegamos a Salamanca sempre a andar pé.  Fomos para um hotel e estivemos lá três dias a jogar às cartas, ao montinho com castanhas que apanhámos no caminho. Depois saímos de Salamanca, fomos para um palheiro onde se encontravam mais vinte homens que já ali estavam há 10 ou 15 dias, cheios de fome. Aqui  deram-nos de comer a todos uma feijoada, numas cortelhas onde havia só porcos. Dormimos e comemos lá no meio deles, enchemos a barriga. Até aqui, o nosso «passador» acompanhou-nos sempre, daqui em diante entregou-nos aos espanhóis, iam passando de uns para os outros.

Daqui para a frente, tivemos que atravessar um rio a pé, ficámos todos molhados, a roupa enxugou-se no corpo até entrarmos para uma camioneta de transporte de animais, para irmos misturados, e assim fazermos  a travessia de toda a Espanha. Para estes homens zeladores que nos transportavam, eramos rotulados como «borregos» para ludibriar as autoridades espanholas para não revistarem o camião.

Ainda nos encontrava-mos  em território espanhol, quando  os carabineiros mandaram parar a camioneta e disseram para abrir as portas, ficámos todos caladinhos, cheios de medo a ouvir os guardas falar com os «passadores». Calhou a ser num sítio em que havia muito transito e talvez tivesse desviado as atenções dos carabineiros mais para o transito, se não estávamos desgraçados. O cheiro era insuportável, uns cagavam aqui, outros mijavam além. Eu tive que rasgar o forro da camioneta, fazer lá um buraco, não se aguentava o cheiro e o calor.

Estas viagens levavam alguns dias e por vezes até mais de uma semana, consoante as dificuldades ou facilidades que se deparam, muitos fatores e  pormenores tinham que ser conhecidos e ponderados, o que por vezes obrigava a atrasos. Uma vez chegados ao destino desta segunda etapa da viagem, próximo da fronteira Francesa fomos novamente descarregados junto com os animais para outro lugar onde aguardamos as ordens dos «passadores».

Desde que entravamos em Espanha  eram os  espanhóis que se entregavam das  operações, embora seguidos à distancia pelo nosso «passador» angariador dos mesmos.

Nova noite, nova aventura o que seria a final etapa para o escape além Pirineus. Era a travessia  destas montanhas rudes e rochosas tantas vezes geladas e cobertas de neve, que tivemos suportar a pé pela escura noite, que eram mais temidas, pois historias se contavam e muitas verídicas, de que  os que se recusassem ou arrependessem da travessia ou por qualquer motivo sofressem qualquer acidente que os impossibilitasse de se moverem pelos seus próprios meios, eram mortos a tiro ou abandonados  na montanha. 

Verdadeiras ou não estas afirmações, constavam em todo o distrito de Bragança. Quantos corpos de compatriotas nossos não foram encontrados nestas montanhas ou desapareceram? Seria preciso  entrar em muitos detalhes, pormenores e averiguações para se constar quantos foram, mas… foram alguns. E todos os que passaram por estas andanças o sabemos.

Este fator atormentava muitos dos que seguiam a aventura, se seriam ou não forçados a seguir a rota a pé, pelos Pirineus, mas não havia garantia, pois eles nunca sabiam qual a modalidade escolhida pelos «passadores».

Uma vez entrados em território francês continuávamos a não estar seguros. Isto dependia das leis em vigor de acolhimento aos emigrantes em França. Havia ocasiões  em que eram aceites mesmo indocumentados, desde que tivessem a confirmação de um lugar certo de trabalho, noutras eram  mesmo postos fora do país, noutras eram  aguardados ou guiados por Portugueses ou Espanhóis para os levarem às autoridades francesas, as quais lhes davam um salvo-conduto até chegarem ao local de trabalho,  que muitas vezes era arranjado previamente por esses intermediários, a troco de mais uns milhares de escudos ou francos, e assim chegavam  ao desejado destino depois de uma aventurosa viagem de fuga à miséria e à guerra colonial em África.

No dia seguinte logo fiz uma barraca, no outro dia, o Zé Júlio da Arrifana veio-me a buscar para o patrão. A partir daí não estive um dia sem trabalho na França. Oito dias depois de dormir na barraca, o patrão logo me arranjou alojamento.

Uma vez chegados ao local de trabalho, uma dura vida nos esperava.  Alguns ficaram em Saint Denis mas, nós os de Argoselo, combinámos a levarem-nos a Paris. As primeiras dificuldades; a língua, o isolamento a que éramos forçados, trabalho duro na agricultura, construção civil ou obras publicas, como pontes, tuneis, estradas, caminhos de ferro, eram os trabalhos que esperavam o emigrante português, explorado ao máximo pelos patrões. 

A francesa onde trabalhava, arranjou-me um terreno onde construí barracas que depois eu as alugava a outros. Mais tarde acabaram com as barracas. A mim deram-me 200 francos para deixar as barracas e ir para um apartamento. Ganhava 96 francos e pagava 60 de renda. Bastava assinar em como tínhamos alojamento, logo nos passavam o «rapicé» que era o primeiro documento, antes da «carta de séjour». O consulado dava o salvo-conduto.

Assim passavam os primeiros anos, trabalhando horas a mais do que o normal, muitos vivendo nas piores condições em velhos alpendres, carruagens etc, fazendo o próprio comer e lavando a própria roupa. Esta fonte de mão de obra barata interessava aos franceses.

E os emigrantes da França que conheçam  as dificuldades e perigos desta vida, saberão bem avaliar isso ...  ao fim e ao cabo acabarão por reconhecer que não foram mal empregados os milhares de escudos dados ao «passadores» pois sem eles era impossível a muitos emigrantes atingir o que desejavam, para obter uma vida melhor e muitos não estariam hoje na situação desafogada em que se encontram.

Enfim, há uns anos para cá, a forma é já mais digna de tratar um cidadão, pelo menos já não é necessário fugir como que um ladrão ou criminoso ou misturado com os animais. Seria necessário entrar em detalhes pormenores para se descrever o que os primeiros emigrantes passaram, desde as viagens do «salto» até as condições de trabalho e viver o que tiveram que enfrentar.

Entretanto as aldeias deste Portugal do interior ou melhor rural, porque nem só do interior emigraram, iam-se tornando despovoadas, como que povoações fantasmas e quem as percorre  apenas vê  uma ou outra pessoa a maioria  já de idade avançada, espreitando uma réstia de sol.

 

Ilídio Bartolomeu


3 comentários:

  1. Realidades pungentes dum passado não muito distante.

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  2. No tempo de Salazar, Portugal estava muito isolado dos outros países, e o povo vivia em grande pobreza, por isso, os argoselenses começaram a emigrar. Mas Salazar não deixava sair ninguém sem ter a “carta de chamada”, que era uma garantia de trabalho no exterior. Mas muitos não a conseguiram arranjar e emigraram clandestinamente. Iam “a salto”. Quando, vinham de férias à sua aldeia dizia, batendo com a mão no sítio onde tinha a carteira, no bolso do casaco: “Aqui hai-o!”, chamavam-no o “caguetas” (gabarola).

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  3. Os emigrantes, sobretudo os que foram para a Europa – França, Suíça, Bélgica, Luxemburgo, e outros, melhoraram muito a sua vida e a economia de Portugal, porque mandavam para cá as suas poupanças. Todos construíram na sua aldeia uma casa/vivenda tipo “maison”, e presentemente muitos regressaram e vivem nas suas terras com boas reformas. Outros ficaram por lá, sobretudo aqueles cujos filhos estudaram nesses países e se integraram bem nas sociedades locais.

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