domingo, 23 de abril de 2023

TODOS TÊM AS SUAS MEMÓRIAS!!!

 

Cada um de nós tem as suas memórias da Terra que é o nosso berço, sendo certo que intrinsecamente de lá nunca saí. Em mim, está sempre presente o inultrapassável tempo da infância. Tempo maior da descoberta dos sentidos e da aprendizagem da vida, que, com saudade, recordo para sempre. Sobre a minha Terra, para além das memórias inconfundíveis da minha gente, dos meus amigos para sempre, das brincadeiras, dos sabores, dos cheiros que me estão colados, vibro, desde criança, com as histórias fascinantes que escutava.

Odiaria ser um daqueles que não tem terra, não tem a sua terra, a terrinha, perdida “lá na província” e onde brinquei. Primeiro porque é a minha, depois porque é de facto a melhor do mundo.

Na minha terra há sempre comida e bebida para toda a gente. Seja porque é dia de festa, seja porque decidimos que, apesar de não haver qualquer motivo para a fazer, é dia de festa. Sim, porque na minha terra qualquer acontecimento é desculpa para comer e beber, seja ele um baile de verão ou simplesmente por visita de um amigo.

Na minha terra há histórias que se contam e histórias que se criam todas as semanas. Na minha terra as pessoas riem com vontade e riem tanto dos outros como de si, não tendo problemas em contar à mesa do café a estupidez que acabaram de fazer. Todos têm alcunhas, todos sabem as histórias mais humilhantes de toda a gente e toda a gente sabe as tuas. Na minha terra o humor raramente tem limites e quando tem, esses limites desaparecem ao 7º copo que é pago como pedido de desculpas e aí já é a própria vítima quem mais ri.

Na minha terra, memórias e histórias despertam imediatamente em mim uma mistura de sentimentos: a enorme solidariedade para com todos os sacrifícios suportados pelas gerações anteriores, e o enorme orgulho de saber da coragem e da humildade para ultrapassar os maiores obstáculos e, se for caso disso, conquistar o mundo. Sou sempre e para sempre de Argoselo, e de todas as nossas aldeias, a minha vila de Argoselo é a melhor do mundo..

Na minha terra as pessoas são brutas, às vezes até um pouco rudes, mas são as pessoas mais sinceras e disponíveis que vais conhecer na tua vida, porque na minha terra um amigo é para a vida, mesmo quando se chateiam. Podes estar um ano sem falar com alguém porque te roubou um metro de terreno ou andou à porrada com o teu melhor amigo, mas no dia em que esse alguém tiver um acidente ou perder um familiar, tu vais ser o primeiro a bater-lhe à porta com uma grade de minis, um chouriço e um abraço.

Na minha terra há pretos e ciganos, há mulheres, homens e crianças, há casados, divorciados e solteiros e todos são iguais: todos são alvo de gozo, por igual, todos levam na tromba, todos dão na tromba, todos bebem e riem e choram e ninguém é posto de parte desde que seja boa pessoa, não tenha a mania e aguente bem a bebida.

Na minha terra há invejas, há problemas, há jogadas políticas e também alguma vaidade totalmente descabida, mas até nisto a minha terra é melhor do que a vossa, porque a maioria de nós está-se figurativamente a cagar para esta gente e, por vezes, até literalmente quando a noite vai longa e aquela decima bebida te dá ideias bem divertidas.

Na minha terra há rios e serras, há calor e há neve às vezes, há javalis de 2 e de 4 patas e há uma felicidade que poucas vezes se vê noutros lados. Na minha terra há gente que sobrevive ao esquecimento e às tormentas do isolamento e da velhice e, normalmente sorri quando o normal seria chorar.

Hoje, infelizmente, a minha Terra encontra-se profundamente despovoada, envelhecida, empobrecida, e marcada pelo êxodo rural e pela emigração. Aqueles que resistem vão observando o desaparecimento de inúmeras tradições agrícolas, de alguns rituais sociais, e de muito conhecimento popular. Na minha Terra, primeiro desapareceram os jovens, e com eles os casamentos, as crianças, as escolas e gradualmente muito de tudo.

Ilídio Bartolomeu


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3 comentários:

  1. Caro Ilidio

    Esta terra, é minha e de todos nós... É de todos aqueles que começaram, que construíram, que abandonaram e de todos aqueles que ainda hoje por aqui permanecem

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  2. Manuel Martins Lopes23 de abril de 2023 às 12:18

    Genuíno estado de alma forjado num tempo e espaço específico no interior mais profundo.

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  3. Faz-me lembrar o texto, parte final, a expressão: as pessoas vão e tudo vai com elas, o que é bem verdade, as pessoas que abriam ou que outrora de madrugada assomavam à janela ao ouvir o primeiro chiar do carro de bois, estão todas a desaparecer e as memorias dum povo vão com elas.
    De algumas janelas, porque em completa ruína, somente restam as ombreiras a desafiar o tempo, mas até um dia...mas como eu cansei de falar da nossa autarquia que nada faz para preservar a ruralidade da aldeia, vou ficar por aqui e apenas dizer que adorei o texto e fotos.

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