FARMACIAS REAIS
Farmácia
Ferreira - Argozelo
Em Argozelo, a
melancolia espreita a cada esquina. Entre casas abandonadas e becos que deixam
adivinhar prados verdes até se perder de vista, a cruz da Farmácia Ferreira
brilha timidamente. Uma utente nos seus 90 anos atravessa a custo a porta do
costume, com auxílio da bengala. No saquinho preto gasto traz uns grelos do seu
campo para oferecer à farmacêutica Julieta.
«Eu não lhes
peço nada», comenta sorridente a directora-técnica de 62 anos, «quando têm umas
verduras a mais vêm cá trazer-me». É assim que os utentes lhe agradecem o
serviço prestado ao longo destes 32 anos, que vai muito para além da dispensa
de medicamentos. A população, maioritariamente pobre e envelhecida, não tem
mais ninguém a quem recorrer.
Mas nem sempre
foi assim
Luís Cabral
conta que, quando o multibanco não funciona, as pessoas têm de ir a Bragança
levantar dinheiro
O utente Luís
Cabral, de 71 anos, guarda com saudade as memórias de outra época. Quando
chegou a Argozelo, com uns ternos 18 anos, trazia na mala o sonho de mudar de
vida. O ano era 1966 e, como tantos outros jovens, Luís deixava o conforto da
sua terra natal, em Viseu, para se juntar aos cerca de 160 trabalhadores das
minas de volfrâmio.
Os tempos eram
outros. Na pequena aldeia da freguesia de Vimioso, em Bragança, contavam-se
mais de 2.000 habitantes e a economia estava em expansão. Pelas ruas havia
pequenos negócios e grandes casas de famílias que ali se instalavam para
trabalhar na agricultura, no curtume, na produção de amêndoa ou de cortiça e
nas minas.
Porém, em 1985,
a exploração de minério terminou. Os trabalhadores foram todos despedidos, à
excepção de uma pequena equipa de manutenção que lá haveria de trabalhar até
1992, altura do fecho definitivo. Desempregados e sem perspetivas de futuro,
muitos emigraram e, gradualmente, a aldeia foi perdendo vida.
A farmácia
abriu em 1987, num antigo posto de venda de medicamentos. Na altura, apesar de
as consequências do encerramento da mina já se notarem, ainda se via jovens. As
escolas estavam abertas, havia algum comércio local e o centro de saúde tinha
dois médicos, com consultas quatro vezes por semana.
Luís constituiu
família e por ali ficou. Em tempos, chegou a trabalhar na agricultura. Agora
«as pernas e os braços já não querem trabalho». Mas não é disso que se queixa.
«Tínhamos o banco, tiraram-nos. Em 2001, a aldeia passou a vila e ainda ficou
pior. Queriam fazer isto, queriam fazer aquilo. E em vez de fazer, tiram-nos o
que havia». O multibanco lá ficou, embora chegue a estar aos quatro e cinco
dias sem dinheiro.
Com o passar
dos anos, a população envelhece e o despovoamento aumenta. Mas Julieta Ferreira
não se arrepende do dia em que decidiu abrir a farmácia em Argozelo.
«Acho que
somos mais úteis aqui do que na cidade», afirma a farmacêutica
«Acho que somos
mais úteis aqui do que na cidade», explica. «Faz-me sentir bem saber que ajudo
no que posso», desabafa, «e os utentes agradecem-me, voltando cá.» E mesmo
quando vão às urgências à cidade, é ali que levantam os medicamentos.
A viver no
andar por cima da farmácia, são muitas as vezes em que a farmacêutica atende os
utentes de madrugada. «Um dia destes foi preciso um medicamento às quatro da
manhã e a doutora abriu-nos a porta». O antigo carteiro da vila, Domingos
Afonso, vive ali com a esposa e a única filha que ainda não emigrou. «O que
temos de melhor é isto», chuta. «Os correios, para bem dizer, já nos tiraram.
Se nos tiram a farmácia mais vale irmos para outro lado».
Aos 70 anos,
Domingos não tem grandes dúvidas: «O que mais precisamos é de saúde». Porém,
para os cerca de 700 habitantes de Argozelo, o acesso à saúde é quase um luxo.
O médico de família está de baixa há um mês, por isso qualquer questão que não
possa ser resolvida na farmácia exige uma viagem de 15 quilómetros até Vimioso
ou do dobro da distância até Bragança. Com apenas dois autocarros por dia e sem
veículo próprio, os idosos gastam entre 30 e 40 euros em táxi de cada vez que
precisam de se deslocar.
«Temos de
juntar forças para que a farmácia não feche», pede Manuel Oliveira
«É mau os
poderes centrais não se interessarem mais por estas zonas, principalmente ao
nível do centro de saúde e da farmácia, que têm de estar perto da população». O
utente Manuel Oliveira fala sem rodeios. E conta que, mesmo antes do médico
adoecer, o centro de saúde funcionava apenas um dia por semana. Devido à falta
de resposta, o carpinteiro de 50 anos garante que há quem tenha de recorrer a
serviços de enfermagem privada para conseguir ser tratado. «Por exemplo, para
os meus pais, com 80 anos, se a farmácia fechasse era complicado», argumenta. E
remata: «Temos de juntar forças para que isso não aconteça».
Sem médico de
família e com os doentes crónicos a precisar da medicação, Julieta Ferreira faz
o que pode para zelar pela saúde das pessoas. «Às vezes, empresto o medicamento
e fico à espera da receita. Se tivessem de o pagar por completo, com certeza
iriam interromper o tratamento, porque não teriam dinheiro suficiente». Mas a
boa vontade nem sempre basta: «Há muitos medicamentos que faltam. Alguns temos
de pedir ao laboratório e nem assim há garantias».
Aos 62 anos, a diretora-técnica
não pensa muito acerca do futuro. Só sabe que baixar os braços não é opção: «O
pior é a falta de medicamentos, o resto vamos controlando». Habituada a gerir a
farmácia sozinha, acolheu alguns farmacêuticos em estágio, mas todos optaram
por se mudar para a cidade. «Não é fácil fixar as pessoas», lamenta, «a minha
filha é farmacêutica e também não quis vir para aqui».
Numa vila em
que nascem um ou dois bebés por ano, as dificuldades aumentam dia após dia. Com
o banco fechado, os correios a funcionar a meio-tempo e o médico de família
ausente, a farmácia é um ponto de apoio para tudo. «Diariamente tenho pessoas a
pedir-me para escrever cartas aos familiares, ler a correspondência e as faturas»,
conta. Como o marido da farmacêutica trabalha em Vimioso, alguns utentes
aproveitam a boleia e há até os que pedem para lhes tratar de recados.
«A gente aqui
está triste. Muito, muito triste». Leonor Fernandes, de 67 anos, chegou a
Argozelo aos 20 e por ali construiu a sua vida. Depois de ter perdido o marido,
há dois anos, tomou conta do café que era dos dois. E é atrás do balcão que
observa com pesar o isolamento da sua terra, nas ruas em que, a cada dia, passa
menos gente.
A farmácia,
assegura, é o bem mais precioso dos argozelenses. É lá que Leonor compra os
medicamentos, mede a tensão e o colesterol. À hora que precisa, a porta abre-se
e os problemas são resolvidos com todo o cuidado. Seja às duas da tarde ou à
uma da manhã. «Nós não temos mais nada sem ser a farmácia. Fecha tanta coisa,
sabe? Até já nos tiraram o banco. Se nos tiram a farmácia, tiram-nos tudo».
Recopiado de publicação
feita por:
Adosinda Tua Rua
25 de Março 2019
Excelente Crónica
Comentário
MANTER A
ESPERANÇA MESMO NAS DIFICULDADES
Apesar de tudo, mantenho a esperança de que alguma coisa mude para contestar o abandono a que têm condenado a Vila de Argoselo, Ter esperança é ter a coragem de criar expectativas positivas. É pensar que sempre haverá uma saída, é saber que não há mal que dure para sempre. Quem tem esperança, sabe que a qualquer momento coisas boas podem acontecer. É o impossível se tornar possível, porque somente no coração em que há esperança acontecem milagres.
Manter a
esperança viva é a maior prova de força que uma pessoa pode dar a si mesmo.
Ilídio
Bartolomeu
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