terça-feira, 7 de março de 2023

HISTÓRIAS QUE CONTAM EXPERIÊNCIAS VIVIDAS

 

Sim, é verdade! Nasci em Argoselo, sou filho do “Tio Chastre e da Maria Tiró.” Se é da terra, se calhar a alcunha é-lhe familiar, aceito o seu reparo. Tenho muito orgulho em ter nascido nesta aldeia. E se digo que sou do Estoril é só porque tenho mais anos aqui, casei aqui, tenho os meus amigos aqui... mas nunca, em circunstância alguma, tive vergonha das minhas origens humildes, nem nunca me esqueço da linda aldeia onde a minha mãe quis que eu nascesse.

Argoselo, foi o meu berço até aos meus 16 anos. Por mais longe que eu vá, a memória da igreja, o som inconfundível dos sinos, o amarelo das flores das giestas, e dos tojeiros, o sabor das castanhas, assadas ou cozidas, o cheiro das febras de porco assadas nas brasas nos dias gelados da desmancha, o sabor férria da água e do anho assado, estão-me colados aos sentidos.

E quem não se lembra das mulheres com xaile pela cabeça para resguardo da chuva-molha-tolos, mas tão fria que diziam trazer neve à mistura. Arrebanhava-se um molho de nabos, um balde do rebusco das azeitonas e um punhado de couves mais amareladas do frio para os animais. e que iriam a cozer no lato de zinco ou cobre. Chamavam-lhe a vianda dos porcos. As outras para cozinhar e irem à mesa, estavam amaciadas pelo gelo, quase prontas para a sopa.

Na adega, dentro do lagar com uma camada de palha no fumo, repousavam e largavam aquele odor único e gulosos, as maças apanhadas no fim da vindima.

O toque com o nó dos dedos nas pipas diziam que estas estavam cheias e o vinho novo seguro. A salgadeira estava limpa e arranjada, esperando a desmancha do porco para receber presuntos e pás, barriga, pés e cabeça que o sal grosso conservaria o ano inteiro.

E enquanto à fogueira, ouvindo o assobiar do vento de cima, aquele que vem dos lados de Espanha , se aqueciam as mãos e esquentavam os pés já com as peúgas calçados, se lançava o desafio da gente da nossa terra. Cá te esperamos Inverno!

Mais do que uma festa… a matança do porco realizava-se sobretudo nos meses de dezembro e Janeiro quando o frio cria condições propícias para tal. Uma matança do porco, pretendia ser um momento de convívio entre a família, amigos e convidados. Durava o dia inteiro, agora a matança é um ato que dura apenas umas horas. São poucas as famílias que ainda cumprem esta tradição.

Depois do almoço os homens, cortavam o porco em pedaços; costeletas, presuntos, espaduas, barriga e o toucinho, as mulheres lavam as tripas, no meu tempo iam à ribeira dos inverniços. Também elas cortavam a carne em pequenos pedaços para fazer as chouriças, salpicões e butelos. Também tinham a missão de cortar o pão para fazer as alheiras, chavianos e os azedos.

E no tempo da castanha! Mal o sol enviava os primeiros raios, ainda com a estrela da manhã acesa, vinha meu tio Porfírio: Então não queres vir rapaz? Pois quero sim, meu tio. É só vestir as calças e lavar a cara. Então vá, avia-te num instante senão os picos espetam-se nos dedos. Já tenho as cestas e a saca. Ai rapaz! Nem as remelas tiraste. Deixa, logo lavas-te melhor.

Lá íamos então, num passo acelerado e certinho. Eu, ora às carreirinhas para o apanhar ora aos pulinhos para o poder acompanhar. Quando o relógio na torre da igreja dava as sete badaladas era certo que já tínhamos a cesta com um bom quarteirão de castanhas. Eu adorava «escartchar» com o calcanhar das alpargatas os ouriços que tombavam sem terem soltado «os dentes».

Está atento, rapaz, não te espetes! advertia o meu Tio Porfírio. Ao despique tentava encher a minha pequena cesta mais depressa do que ele. E claro que conseguia porque era bem mais pequenino. Fazia uma festa, como se fosse um grande rapazinho! Era a época das últimas colheitas, antes das geadas, tão temidas pelos retardatários! Os dias encurtavam. Embora nos levantássemos cedo, o dia era já muito pequenino o que me enchia de saudade. Saudade que ainda guardo em mim.

Agora as condições climáticas andam confusas e confundem as gentes, a mínima alteração do tempo serve logo para empolamento noticioso que chega a provocar receios e medos. Mas dantes eram situações encaradas como normais pelas nossas gentes.

A neve, geada, chuva, vento e saraivadas, eram esperadas em Janeiro e Fevereiro, como uma dádiva, tinham de vir no tempo certo para bem das culturas. Assim, estava escrito na "Biblia" do agricultor - sabedoria popular - traduzida em ditos e provérbios que valorizavam a natureza e o seu ciclo como manifestações naturais do tempo e do clima.

"Janeiro geoso e Fevereiro chuvoso, fazem o ano formoso".
"A neve que em Fevereiro cai nas serras, poupa um carro de estrume às terras".

"Em Fevereiro chuva, em Agosto, uva".

A agricultura familiar em Argoselo era marcada pela prática de produção de cereais em pequena  escala, o agricultor tinha como principal objetivo a produção para garantir a sobrevivência da sua família. 

Depois o dinheiro era, sempre escasso, o centeio servia como principal género de troca: Pagar ao barbeiro, pagar a Côngrua ao pároco, pagar rendas de lameiros, ou mesmo uma proporção para pagar as ferragens de animais, pagar a cobrição das vacas, para citar apenas as mais usuais. E tinha ainda de garantir que ficava com a quantidade de semente necessária para a sementeira seguinte. Por isso, a arca tinha de ficar bem cheia para durar até à próxima colheita. E os anos, por vezes, eram ingratos maio e junho, eram meses complicados numa altura em que os dias são grandes e o trabalho era árduo. Hoje, Argoselo produz cada vez menos cereais.

As festas de verão, em honra do Senhor do Bonfim, São Roque, São Bartolomeu e de  Nossa Senhora das Dores, temperadas pela ancestralidade cultural, as festas e as romarias são uma forma das pessoas expressarem aos santos a sua profunda devoção, num apelo de bênção e graças para momentos difíceis, que, os afagam de paz,  alegria e profunda inquietação, angústia e dor.

Entre o religioso e o profano, nas festas e romarias, há convívio e diversão. Bandas de música animam as ruas, rememoram-se lendas e tradições, esplendoroso fogo de (artifício nos arrais), Nos dias de Festas, saem da Igreja Matriz majestosas procissões em volta da população. As pessoas exprimem aos santos toda a sua devoção e pedem um futuro melhor e cumpre-se a tradição de ver e rever a família, amigos e conhecidos.

Recordo com saudade as vindimas da minha infância e da adolescência, a atividade intensa salpicada de alegria e de constante boa disposição.   Era um trabalho em que toda a família se envolvia, era um ato de amor e de união, o reencontro de amigos, um trabalho partilhado em sintonia e harmonia.

Fizesse sol ou chuva, a apanha das uvas começava bem cedo para aproveitar todas as caraterísticas de cada cepa. As pessoas distribuíam-se pelos valados e  apanhavam os cachos de uvas à mão ou cortavam-nos com ajuda de um canivete ou de uma tesoura, processo, ainda, utilizado nas vindimas.

Depois de uma manhã inteira a vindimar, chegava o descanso merecido com um almoço nutritivo, sempre em ambiente de festa. Desses almoços tenho saudades do sabor da espanholada e aromas inconfundíveis das sardinhas assadas na fogueira feita com vides. Sabores e cheiros que nunca mais os vivenciei!

Este espelho fotográfico da terra onde me fiz adulto, surge com a vontade de mostrar que, no meio de um imenso pessimismo e desvanecimento destas vidas, existe algo que deve ser apreciado e enaltecido: uma transparência rara extremamente inocente, mas também sábia. Estas pessoas são as que mais me pertencem nesta terra, são pessoas que sempre recordo ao lembrar-me deste sítio, são pessoas que me viram crescer e que eu vi envelhecer; são reflexos precisos desta aldeia.

Escrever sobre Argoselo, coisas que aprecio: memórias e histórias do mundo rural e de tudo o que tenho saudades no (Blog. Freixagosa), é de, um dia, juntar num livro os textos que foram germinando ao longo dos anos, sem que seja muito clara a forma que irá tomar. O resultado final acaba por ser uma surpreendente combinação de histórias, que vão desfilando ao sabor da evocação do trabalho árduo, consistente e determinado, realizado ao longo dos últimos 20 anos. A estas histórias, junta-se um outro conjunto, extremamente marcante, de que alguns argoseleiros tiveram a coragem e a generosidade de partilhar. São as suas histórias pessoais, vividas na primeira pessoa em tempos árduos  de guerra e de luta pela sobrevivência. Nelas bate o verdadeiro coração desta publicação.

Agradeço a presença de quem diariamente participa, via comentários. Entendo que são quem reconhece o meu esforço, para que a cada dia a cultura Argoselense, seja mais conhecida e valorizada. O meu bem-haja.

É um prazer registar, no presente, as vivências do passado.

Ilídio Bartolomeu


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6 comentários:

  1. Olá boa tarde
    A saudade é o que fica daquilo que partiu, daquilo que já não é mais. Saudade é ausência, é o sentimento de vazio que fica daquilo que se foi. Mas, às vezes, a saudade é um vazio tão grande que ocupa muito espaço dentro do coração, e aperta tanto o peito que acaba transbordando e escorrendo pelos olhos. Se sentimos saudades de algo ou de alguém, é porque o objeto da saudade nos trouxe felicidade, foi algo ou alguém que amamos. Por isso, a saudade dói. A saudade é a insistência da memória de manter vivo e presente, perto de nós o que já não temos. A saudade faz o ponto final virar uma vírgula na vida. Há saudades que se pode matar, há outras que são capazes de nos fazer morrer. Mas a saudade é sempre uma memória de amor que não morre.
    Obrigado pelo seu lindo texto

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  2. Olá
    Quando estamos de bem com o passado, conseguimos olhar para trás com a sensação de ter vivido intensamente. Só não podemos deixar que ela ocupe todos os espaços do presente
    abraço

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  3. Oh! Que saudades do tempo que se foi e não volta jamais. Fica a lembrança. Coração apertado e cheio de emoção. Olhos se enchem de lágrimas, por alguns instantes, de saudades do bom muito e do melhor de se reviver e recordar. A vida deu-me e continua dando tantas alegrias durante minha caminhada
    É tão bom ler as tuas crónicas

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  4. Faz bem lembrar!

    E hoje, ao recordarmos a primeira memória que temos da infância, percebemos que aquele mundo tão pequeno, afinal, é fisicamente tão grande. “Jorgito, vai à Tia Saude comprar um quartilho de azeite– pedia a minha mãe. Aqueles setenta metros para um lado e os mesmo setenta metros para o outro eram uma aventura. Depois, veio a escola e os horizontes alargaram-se mais, mas pouco. Contudo, a memória dos cheiros, das pessoas e das brincadeiras na rua é imensa, e ficou entranhada na pele e na lembrança.

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  5. Olá Ilídio
    Saudade... Sentimento tão normal que não existe um só ser que não o sinta. Temos saudade de tudo: amigos, familiares, amores, momentos, situações... É quando um certo sabor de nostalgia se faz presente de tal forma que nos traz a vontade de reviver o tempo. Mas, como podemos administrar essa essência saudosista e, principalmente, transformá-la numa ação saudável, produtiva e benéfica para o futuro? Claro que cada um é cada um e que dependerá exclusivamente da maneira de como vemos a vida, mas, há formas que podem ajudar aqueles que buscam usar das melhores lembranças do passado, uma fonte próspera de bem-estar, paz e equilíbrio.
    Um abraço

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  6. Manuel Martins Lopes8 de março de 2023 às 07:35

    Feliz testemunho que valoriza quem o escreveu e que é merecedor de agradecimento de todos quantos com ele se identificam nas nossas Aldeias e Vilas. Em nome do Movimento Cívico Concelhio, Rede Atalaia, obrigado Ilídio Bartolomeu.

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