Sim, é verdade!
Nasci em Argoselo, sou filho do “Tio Chastre e da Maria Tiró.” Se é da terra,
se calhar a alcunha é-lhe familiar, aceito o seu reparo. Tenho muito orgulho em
ter nascido nesta aldeia. E se digo que sou do Estoril é só porque tenho mais
anos aqui, casei aqui, tenho os meus amigos aqui... mas nunca, em circunstância
alguma, tive vergonha das minhas origens humildes, nem nunca me esqueço da linda aldeia
onde a minha mãe quis que eu nascesse.
Argoselo, foi o meu berço até aos meus 16 anos. Por
mais longe que eu vá, a memória da igreja, o som inconfundível dos sinos, o
amarelo das flores das giestas, e dos tojeiros, o sabor das castanhas, assadas
ou cozidas, o cheiro das febras de porco assadas nas brasas nos dias gelados da
desmancha, o sabor férria da água e do anho assado, estão-me colados aos
sentidos.
E quem não se
lembra das mulheres com xaile pela cabeça para resguardo da chuva-molha-tolos,
mas tão fria que diziam trazer neve à mistura. Arrebanhava-se um molho de
nabos, um balde do rebusco das azeitonas e um punhado de couves mais amareladas
do frio para os animais. e que iriam a cozer no lato de zinco ou cobre.
Chamavam-lhe a vianda dos porcos. As outras para cozinhar e irem à mesa,
estavam amaciadas pelo gelo, quase prontas para a sopa.
O toque com o
nó dos dedos nas pipas diziam que estas estavam cheias e o vinho novo seguro. A
salgadeira estava limpa e arranjada, esperando a desmancha do porco para
receber presuntos e pás, barriga, pés e cabeça que o sal grosso conservaria o
ano inteiro.
E enquanto à
fogueira, ouvindo o assobiar do vento de cima, aquele que vem dos lados de Espanha
, se aqueciam as mãos e esquentavam os pés já com as peúgas calçados, se
lançava o desafio da gente da nossa terra. Cá te esperamos Inverno!
Mais do que uma
festa… a matança do porco realizava-se sobretudo nos meses de dezembro e
Janeiro quando o frio cria condições propícias para tal. Uma matança do porco,
pretendia ser um momento de convívio entre a família, amigos e convidados. Durava
o dia inteiro, agora a matança é um ato que dura apenas umas horas. São poucas
as famílias que ainda cumprem esta tradição.
E no tempo da
castanha! Mal o sol enviava os primeiros raios, ainda com a estrela da manhã
acesa, vinha meu tio Porfírio: Então não queres vir rapaz? Pois quero sim, meu
tio. É só vestir as calças e lavar a cara. Então vá, avia-te num instante senão
os picos espetam-se nos dedos. Já tenho as cestas e a saca. Ai rapaz! Nem as
remelas tiraste. Deixa, logo lavas-te melhor.
Lá íamos então,
num passo acelerado e certinho. Eu, ora às carreirinhas para o apanhar ora aos
pulinhos para o poder acompanhar. Quando o relógio na torre da igreja dava as
sete badaladas era certo que já tínhamos a cesta com um bom quarteirão de
castanhas. Eu adorava «escartchar» com o calcanhar das alpargatas os
ouriços que tombavam sem terem soltado «os dentes».
Agora as condições climáticas andam confusas e confundem as gentes, a
mínima alteração do tempo serve logo para empolamento noticioso que chega a
provocar receios e medos. Mas dantes eram situações encaradas como normais
pelas nossas gentes.
A neve, geada, chuva, vento e saraivadas, eram esperadas em Janeiro e
Fevereiro, como uma dádiva, tinham de vir no tempo certo para bem das culturas.
Assim, estava escrito na "Biblia" do agricultor - sabedoria popular -
traduzida em ditos e provérbios que valorizavam a natureza e o seu ciclo como
manifestações naturais do tempo e do clima.
"Janeiro
geoso e Fevereiro chuvoso, fazem o ano formoso".
"A neve que em Fevereiro cai nas serras, poupa um carro de estrume às
terras".
"Em
Fevereiro chuva, em Agosto, uva".
A agricultura
familiar em Argoselo era marcada pela prática de produção de cereais em pequena escala, o agricultor tinha como principal
objetivo a produção para garantir a sobrevivência da sua família.
As festas de verão, em honra do Senhor do Bonfim, São Roque, São Bartolomeu e de Nossa Senhora das Dores, temperadas pela ancestralidade cultural, as festas e as romarias são uma forma das pessoas expressarem aos santos a sua profunda devoção, num apelo de bênção e graças para momentos difíceis, que, os afagam de paz, alegria e profunda inquietação, angústia e dor.
Recordo com
saudade as vindimas da minha infância e da adolescência, a atividade intensa
salpicada de alegria e de constante boa disposição. Era um trabalho
em que toda a família se envolvia, era um ato de amor e de união, o reencontro
de amigos, um trabalho partilhado em sintonia e harmonia.
Depois de uma
manhã inteira a vindimar, chegava o descanso merecido com um almoço nutritivo,
sempre em ambiente de festa. Desses almoços tenho saudades do sabor da
espanholada e aromas inconfundíveis das sardinhas assadas na fogueira feita com
vides. Sabores e cheiros que nunca mais os vivenciei!
Este espelho
fotográfico da terra onde me fiz adulto, surge com a vontade de mostrar que, no
meio de um imenso pessimismo e desvanecimento destas vidas, existe algo que
deve ser apreciado e enaltecido: uma transparência rara extremamente inocente,
mas também sábia. Estas pessoas são as que mais me pertencem nesta terra, são
pessoas que sempre recordo ao lembrar-me deste sítio, são pessoas que me viram
crescer e que eu vi envelhecer; são reflexos precisos desta aldeia.
Agradeço a presença de quem diariamente participa, via comentários. Entendo que são quem reconhece o meu esforço, para que a cada dia a cultura Argoselense, seja mais conhecida e valorizada. O meu bem-haja.
É um prazer registar, no presente, as vivências do passado.
Ilídio Bartolomeu
OS TEUS COMENTÁRIOS SÃO BEM-VINDOS
Olá boa tarde
ResponderEliminarA saudade é o que fica daquilo que partiu, daquilo que já não é mais. Saudade é ausência, é o sentimento de vazio que fica daquilo que se foi. Mas, às vezes, a saudade é um vazio tão grande que ocupa muito espaço dentro do coração, e aperta tanto o peito que acaba transbordando e escorrendo pelos olhos. Se sentimos saudades de algo ou de alguém, é porque o objeto da saudade nos trouxe felicidade, foi algo ou alguém que amamos. Por isso, a saudade dói. A saudade é a insistência da memória de manter vivo e presente, perto de nós o que já não temos. A saudade faz o ponto final virar uma vírgula na vida. Há saudades que se pode matar, há outras que são capazes de nos fazer morrer. Mas a saudade é sempre uma memória de amor que não morre.
Obrigado pelo seu lindo texto
Olá
ResponderEliminarQuando estamos de bem com o passado, conseguimos olhar para trás com a sensação de ter vivido intensamente. Só não podemos deixar que ela ocupe todos os espaços do presente
abraço
Oh! Que saudades do tempo que se foi e não volta jamais. Fica a lembrança. Coração apertado e cheio de emoção. Olhos se enchem de lágrimas, por alguns instantes, de saudades do bom muito e do melhor de se reviver e recordar. A vida deu-me e continua dando tantas alegrias durante minha caminhada
ResponderEliminarÉ tão bom ler as tuas crónicas
Faz bem lembrar!
ResponderEliminarE hoje, ao recordarmos a primeira memória que temos da infância, percebemos que aquele mundo tão pequeno, afinal, é fisicamente tão grande. “Jorgito, vai à Tia Saude comprar um quartilho de azeite– pedia a minha mãe. Aqueles setenta metros para um lado e os mesmo setenta metros para o outro eram uma aventura. Depois, veio a escola e os horizontes alargaram-se mais, mas pouco. Contudo, a memória dos cheiros, das pessoas e das brincadeiras na rua é imensa, e ficou entranhada na pele e na lembrança.
Olá Ilídio
ResponderEliminarSaudade... Sentimento tão normal que não existe um só ser que não o sinta. Temos saudade de tudo: amigos, familiares, amores, momentos, situações... É quando um certo sabor de nostalgia se faz presente de tal forma que nos traz a vontade de reviver o tempo. Mas, como podemos administrar essa essência saudosista e, principalmente, transformá-la numa ação saudável, produtiva e benéfica para o futuro? Claro que cada um é cada um e que dependerá exclusivamente da maneira de como vemos a vida, mas, há formas que podem ajudar aqueles que buscam usar das melhores lembranças do passado, uma fonte próspera de bem-estar, paz e equilíbrio.
Um abraço
Feliz testemunho que valoriza quem o escreveu e que é merecedor de agradecimento de todos quantos com ele se identificam nas nossas Aldeias e Vilas. Em nome do Movimento Cívico Concelhio, Rede Atalaia, obrigado Ilídio Bartolomeu.
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