Ao acaso dos
caprichos das já longínquas e desvanecidas memórias minhas, sou assaltado por
imagens das rotinas do dia a dia de Argoselo, desses outros tempos;
inesquecíveis, vejo-as e ouço-as como se fossem hoje e agora; gostei muito de
ter vivido a “minha” pequena aldeia
Tudo começava
no cantar dos galos, em alvoroçados e esganiçados despertares e madrugares ao
nascer do sol, e logo as casas, estremunhadas, ganhavam vida nas pressas das
mulheres a prepararem os “mata bichos” dos seus homens que iam
trabalhar e para as crianças irem para a escola das Eiras das Éguas, depois,
manhã muito cedo ainda, chegava a padeira Tia Folicíssima, ligeira e expedita,
ruas fora, indo de casa em casa, saco imenso às costas, quase a arrastar o
chão, cheio de fogaças de trigo, centeio e papo secos, pregões altissonantes
atirados ao ar, fazendo-se anunciar de lá bem longe…
Mais tarde,
chegava a “sardinheira”, a Tia Rita do Orelhas” sem ser tal, era
apenas muito trigueira e arrebitada de humores, rosto picado das bexigas, coisa
vinda de miúda, de palavra fácil e brejeira, caixa de madeira cheia de pescado
sortido em cima da mula apregoando carapaus, chicharros, fanecas e sardinhas às
unidades, ao peso ou às dúzias, meias dúzias e aos quarteirões, por uns simples
tostões, tudo acabado de pescar e de chegar direto de Matosinhos, fresco como
nunca mais se viu e nem hoje se sonha ou imagina… tudo agora é congelado,
higienizado, embalado…
A seguir, às 7h45,
passava por ali, frente à minha casa, sempre à mesma hora, como se fosse um
relógio, o Sr. Arlindo Nestal (Pai) que vinha do Recosto mui digno, e sério, de avaras palavras e aprumadíssimo,
dando sempre os “Bons dias ao “Chastre” (meu Pai), ia a caminho das Minas—
sitio onde hoje é o museu céu aberto― entretanto, estridentemente, às oito em
ponto, soava o apitar da serene das minas, marcando o ritmo dos trabalhos da
vida na aldeia, nos campos, tudo tinha já começado no alvorar do astro
rei …
Os homens da
aldeia às oito já estavam todos a trabalhar, os cavadores de enxada desde o
nascer do sol, para si próprios ou rogados ao dia fora, a quinze escudos a
jorna, ferreiros serralheiros, mecânicos, pedreiros, caiadores, etc… começavam
pelas oito ou sete da manhã…ou mais cedo…mas todos, sem exceção, tinham também
as suas terras, próprias ou arrendadas, onde tratavam das batatas, feijão,
couves e outros hortícolas, trabalhadas fora de horas, por toda a família, para
subsistências ou ajudas da mesma, conseguidas á custa de muito labor, suor,
sacrifícios e, sobretudo, de muita dignidade e auto estima de cada um, para não
viverem de mãos estendidas às caridades de terceiros.
As gentes da
aldeia desses tempos eram simples e humildes sim, eram, por boa educação, mui
respeitosos dos senhores mais altos na vida, a quem cumprimentavam de chapéu na
mão mas, nessa sua simplicidade e correção de maneiras, eram grandes, donos de
si próprios, tinham nos calos das suas mãos a independência económica, a
liberdade e o pão da família, dependiam apenas da sua enxada ou outras
ferramentas, das terras suas ou de renda,
do sol, da chuva e das pragas e não tanto ou quase nada de patrões, ou
de caridades particulares; eram homens livres e sem donos, foi assim que eu
vivi e senti esses homens e mulheres e esses tempos.
As mulheres e
mães de família eram todas elas domésticas, assoberbadas desde manhã cedo no
tal “mata-bichar” dos seus homens, antes destes saírem para o
trabalho, e no preparar das crianças a caminho da escola, feito isto, davam uma
volta pela casa, tratavam da criação, galinhas, coelhos, porcos, etc.., iam
deitar umas águas para regas simples, sacharem ou mondarem ervas daninhas dumas
quaisquer culturas, por vezes lavar umas roupas no tanque publico, lá na Espadana,
ou nos ribeiros do Fradal e dos Inverniços, bem torcidas, esfregadas e batidas,
sonde, a meio com as lavagens, barrelas e o corar ao sol das roupas,
mexericavam bem mexericadas as vidas lá da terra, e depois iam apanhar umas
verduras às hortas para o “jantar” ou para a “ceia”; na
aldeia dizia-se: almoço dizia-se jantar e o jantar era a ceia, outros tempos.
As Primaveras
desses “antigamente” eram as mais queridas e lindas das estações do
ano, traziam consigo o ressuscitar da vida em glória, quer na alma e coração
das gentes rurais, quer pelos campos e baldios fora, com tudo a explodir
em policromias mil, de verdes e flores sem fim, ao som de sinfonias escritas
pelos deuses nos cantares dos grilos e das aves, estas muitas e diversas, rouxinóis,
pintassilgos, cucos, pôpas, rolas, pardais, melros, tentilhões, verdilhões e
até tralhões, etc… tudo isto em fundos de silêncios despoluídos e vazios até de
carros, exceto os de bois… eram silêncios magníficos, feitos de natureza pura,
e do vozear ocasional das gentes …
O regresso dos
homens a casa no fim do dia de trabalho, vindos dos campos e das oficinas, por
vezes era menos pacífico, pois o vinho tinto, de quando em quando, corria mais
do que o devido ao longo do dia, e sendo mau conselheiro dava aso a que velhas
ou novas rixas entre vizinhos e não só, algumas vindas de gerações passadas,
ocorressem ou se reacendessem, acabando em altercações mais ou menos violentas,
com umas cabeças partidas mas, logo de imediato, confrontavam-se com a presença
da GNR, que eram prontamente obedecidos só pela presença, e a paz regressava à
aldeia.
Argoselo tinha
aí umas mil casas e igual número de famílias, que foram gradualmente aumentando
em número, todas sem eletricidade, sem água canalizada e sem esgotos até meados
dos anos 50, mas havia fontenários, e um lavadouro publico, até que finalmente,
estas infraestruturas chegaram.
O correr dos tempos trouxe, inevitavelmente, o
progresso, novos prédios, ruas asfaltadas, iluminadas, água corrente, e o
abandono das agriculturas, como subsistências básicas dos aldeões aqui viventes.
Gosto muito de
Argoselo, já me habituei a ele e ao nome, é o progresso e o ciclo normal das
vidas em movimento, mas tenho também muitas saudades, onde nós, os garotos,
brincávamos, nas ruas de terra batida, que, como passado que foi, já só volta
em memórias como estas de velhos como eu…
Ilídio Bartolomeu
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