|
Ainda se lembram? |
Crónica
Escrevo
para os que gostam de ler; para as pessoas que debatem ideias, ainda
que diferentes das minhas, mas, sem assumirem o posto de guardiãs da
verdade ou do absolutismo de uma vertente – sobre qualquer assunto
que envolva, sociedade, cultura ou política. Escrevo para as pessoas
com alma, que querem permanecer lúcidas, mesmo que na paisagem haja
falta de empatia. A minha aldeia não é o mundo, é uma ponte para
ligar a História, colocar no mapa a opinião e o sacrifício do que
significa.
No
ano em que nasci, nasceram mais quarenta e cinco crianças nesta
aldeia. Aos sete anos, todas fomos frequentar a escola pela primeira
vez. Fizesse chuva ou sol escaldante íamos a pé, fosse do bairro do
Latedo, do Bairro de Baixo, dependendo de onde vivia até à escola.
A roupa e calçado que usávamos por vezes não se adequavam ao
tempo. Lembro-me no inverno chegarmos à escola completamente
encharcados. Nesta altura a escola tinha três salas para raparigas
e rapazes (separados).
Desde
essa altura… que a minha memória começou a fixar as coisas que
via. Lembro-me que era uma manhã risonha, com orvalhada, mas com sol
quentinho, o meu tio Porfirio, aparelhou um jumento que tinha, com
uma tosca albarda, e pôs-me em cima do animal e resolveu levar-me
com ele até à horta que ficava para os lados de São Roque. Foi a
primeira vez que montei num animal. Uma verdadeira aventura para uma
criança da minha idade.
Depois
de sair do povoado, comecei a avistar a natureza. Do meu lado
esquerdo, os olmos e as eiras dos Amados; do meu lado direito, o sol
que há pouco tinha nascido, as vinhas, terras cultivadas e ao ouvir
os diferentes cantos das aves, perguntava ao meu tio; que pássaros
são estes que estão a cantar? e ele dizia-me… é o rouxinol, é o
pintassilgo, etc., isto ao longo das terras de cultivo. Ao avançar
para os pinhais, o canto das aves já era outro; o cuco o gaio etc...
O caminho marcado pelos fundos rodados dos carros de bois; e gostei
tanto daquele contacto com a natureza, que não sei porquê, as
minhas retinas de criança, fixaram e gravaram para sempre na minha
memória, aquele cenário, para o resto da minha vida. Talvez daí a
razão do que vou contar, e eis o principal cenário que continua
vivo na minha mente e o motivo por que escrevo esta crónica.
|
Lembram-se desta Fonte das Nogueiras? |
À
semelhança de outras aldeias do interior, a nossa também nesta
época não tinha luz elétrica nem água canalizada. Todos os
fins-de-semana havia um bailarico, vinham pessoas doutras aldeias e
principalmente jovens, pois nesta aldeia havia muitas raparigas. Era
um dos entretimentos, onde se divertiam novos e mais velhos, ao som
da rádio, ou do realejo. Qualquer coisa servia para divertir este
povo sempre muito danado para a paródia. Como não havia luz
elétrica, estes bailaricos por vezes eram feitos à luz do luar. Os
rapazes muito malandrecos, aproveitavam-se deste momento para dar um
beijinho ao seu par e despiderem-se; até ao próximo domingo.
Hoje,
ao olhar para trás, fico admirado por, numa aldeia haver tantas
profissões no ativo diário…quanto a profissões, havia de tudo um
pouco. A maioria das pessoas eram comerciantes, agricultores e era da
agricultura que viviam. Mas havia profissões a dar com um pau, como,
por exemplo: ferreiros, carpinteiros, padeiros, costureiras,
alfaiates, tecedeiras, barbeiros, latueiros, peleiros, eletricistas e
mineiros estes; de desgaste rápido, pressão e stresse; desgaste
emocional e físico; e condições de trabalho exigentes, e bastante
penosas.
Hoje…
percorrendo o mesmo trajeto (paraíso) de à setenta e seis anos, o
que fiz, o caminho hoje é rua, é diferente; desapareceram os
vestígios dos animais de carga e os rodados dos carros de bois e
deram lugar a casas, as aves… essas desapareceram; o seu cantar foi
substituído pelo som da rádio e as terras que outrora estavam bem
cultivadas dissolveram-se. O paraíso da minha infância, da memória
a desabrochar para o mundo, como aquela manhã de
Primavera…desapareceram… mas enquanto eu viver, ainda me
lembro…Há coisas que nunca esquecem…e outras por serem das
primeiras que o nosso cérebro guarda, quando começamos a tomar
consciência do que existe à nossa beira, ficam-nos gravadas para
sempre nessa calculadora maravilhosa a que chamamos memória e vão e
vêm à nossa mente para o resto da nossa vida. Esta é uma delas. É
algo impagável. É sinal que vivemos e que a nossa vida fez sentido,
só pelas pequenas histórias e memórias que conseguimos juntar ao
longo dos anos. Todos
temos histórias longínquas – quer fictícias, quer reais – que
ao longo dos anos foram povoando o nosso imaginário, que nos
acompanharam pela vida fora e que foram tomando conta da nossa
memória. Para os mais antigos, são histórias de outros tempos,
contadas nos serões das aldeias, à lareira, ou transmitidas
oralmente às gerações mais novas. Podem ser relatos autênticos ou
recriados, lendas, testemunhos, contos, isto é, uma herança
cultural coletiva que se vai adulterando com o passar do tempo ou
|
E desta Imagem lembram-se |
que,
se não for transmitida, está votada ao esquecimento. Podem ser,
também, vivências pessoais de tempos idos, que habitam a nossa
memória individual e que recordamos com saudade e ternura. Em comum,
têm a oralidade, a singularidade, os afetos e a pertença a uma
terra, a um lugar.
Sonho
daqui uns anos, mais velho, me relembrar de tudo o que vivi e saber
que vivi a minha melhor vida. Rir comigo e com os meus amigos de
todas as aventuras, experiências e peripécias que cada um viveu.
Vão ser bons momentos.
Ao
acaso dos caprichos das já longínquas e desvanecidas memórias
minhas, sou assaltado por imagens desses outros tempos;
inesquecíveis, vejo-as e ouço-as como se fossem hoje e agora. Como
eu gostaria de saber transmitir numa tela, estas imagens de infância
que ainda guardo na minha mente.
Adoro
memórias. Adoro lembrar-me de pequenos momentos que me fizeram
sorrir no passado e momentos menos bons que me fizeram quem sou hoje
no presente. Ambos são tão importantes, apesar de ser muito melhor
relembrar os momentos felizes. Pois na minha memória ficou mais
acentuada aquela imagem da saída da povoação e o contacto com o
espaço aberto da natureza (hoje sei) era de Primavera.
Regressar
a uma aldeia onde fomos felizes, em crianças, é como tentar coser
uma manta de pequenos retalhos de memória. Vale tudo para recuperar
histórias e sensações antigas. Um cheiro, uma porta familiar. Ou
uma conversa informal, entre amigos.
Na
minha mente de criança, penso hoje, se existe o paraíso, seria
aquela paisagem, aquele envolvimento com a natureza, naquele ambiente
rural, naquela idade do desabrochar para a vida…visto por uma
criança, nem me dava conta. Achava tudo normal.
A
minha Aldeia primeira,
É
linda de lés a lés,
Com
o Serro à cabeceira,
E
o Rio Maças a seus pés.
Blog
Freixagosa