Os anos 60 e
início dos anos 70 são caracterizados por uma forte emigração portuguesa para a
Europa, não só para trabalhar, mas, também, para fugir à guerra colonial
«A minha ida
para França » é uma história de vida contada na primeira pessoa, Horácio Silva,
recorda o «salto» para França no ano de 1963. Estava sempre a ouvir que por lá
se ganhava muito dinheiro.
Para sair daqui
era preciso ajustar com
o «passador», dentro da complexa maquina do «salto» (assim se chamava a partida
clandestina) o preço monetário a pagar, na altura em média era 10.000$00,
porque o resto poderia custar muito mais. Mas Horácio Silva sabia-o
e não hesitava, a decisão de procurar outra maneira de ganhar o sustento da
família era profícua… não havia outro caminho a seguir. Dava logo metade
do dinheiro antes de sair, comigo levava uma fotografia e quando lá chegasse rasgava a fotografia ao meio, dava metade ao «passador»
para entregar à família para poder receber o total do dinheiro.
Assim, com alguma roupa preparada, só o indispensável e alguma coisa para
comer, parti da terra que me viu nascer pelo silêncio da noite; deixando para
traz a melhor fortuna que tinha…mulher, filhos e família. Comigo, iam mais 6 pessoas. Saímos da aldeia em direção à Espanha.
Fazia bom tempo caminhávamos só de noite e apanhámos chuva em Espanha.
A primeira
noite chegamos a Salamanca sempre a andar pé. Fomos para um hotel e estivemos
lá três dias a jogar às cartas, ao montinho com castanhas que apanhámos no
caminho. Depois saímos de Salamanca, fomos para um palheiro onde se encontravam
mais vinte homens que já ali estavam há 10 ou 15 dias, cheios de fome. Aqui deram-nos de comer a todos uma feijoada, numas
cortelhas onde havia só porcos. Dormimos e comemos lá no meio deles, enchemos a
barriga. Até aqui, o nosso «passador» acompanhou-nos sempre, daqui em diante entregou-nos
aos espanhóis, iam passando de uns para os outros.
Daqui para a frente, tivemos que atravessar um
rio a pé, ficámos todos molhados, a roupa enxugou-se no corpo até entrarmos para
uma camioneta de transporte de animais, para irmos misturados, e assim fazermos a travessia de toda a
Espanha. Para estes homens zeladores que nos transportavam, eramos rotulados
como «borregos» para ludibriar as autoridades espanholas para não revistarem o
camião.
Ainda nos
encontrava-mos em território espanhol,
quando os carabineiros mandaram parar a
camioneta e disseram para abrir as portas, ficámos todos caladinhos, cheios de
medo a ouvir os guardas falar com os «passadores». Calhou a ser num sítio em
que havia muito transito e talvez tivesse desviado as atenções dos carabineiros
mais para o transito, se não estávamos desgraçados. O cheiro era insuportável, uns
cagavam aqui, outros mijavam além. Eu tive que rasgar o forro da camioneta,
fazer lá um buraco, não se aguentava o cheiro e o calor.
Estas viagens levavam alguns dias e por vezes até mais de uma semana,
consoante as dificuldades ou facilidades que se deparam, muitos fatores
e pormenores tinham que ser conhecidos e ponderados, o que por vezes
obrigava a atrasos. Uma vez chegados ao destino desta segunda etapa da viagem,
próximo da fronteira Francesa fomos novamente descarregados junto com os
animais para outro lugar onde aguardamos as ordens dos «passadores».
Desde que entravamos em Espanha eram os espanhóis que
se entregavam das operações, embora seguidos à distancia pelo nosso
«passador» angariador dos mesmos.
Nova noite, nova aventura o que seria a final etapa para o escape além
Pirineus. Era a travessia destas montanhas rudes e rochosas
tantas vezes geladas e cobertas de neve, que tivemos suportar a pé pela
escura noite, que eram mais temidas, pois historias se contavam e muitas
verídicas, de que os que se recusassem ou arrependessem da travessia
ou por qualquer motivo sofressem qualquer acidente que os impossibilitasse de
se moverem pelos seus próprios meios, eram mortos a tiro ou
abandonados na montanha.
Verdadeiras ou não estas afirmações, constavam em todo o distrito de
Bragança. Quantos corpos de compatriotas nossos não foram encontrados nestas
montanhas ou desapareceram? Seria preciso entrar em muitos detalhes, pormenores e
averiguações para se constar quantos foram, mas… foram alguns. E todos os que
passaram por estas andanças o sabemos.
Este fator atormentava muitos dos que seguiam a aventura, se seriam ou não
forçados a seguir a rota a pé, pelos Pirineus, mas não havia garantia, pois
eles nunca sabiam qual a modalidade escolhida pelos «passadores».
Uma vez entrados em território francês continuávamos a não estar seguros.
Isto dependia das leis em vigor de acolhimento aos emigrantes em França. Havia
ocasiões em que eram aceites mesmo indocumentados, desde que
tivessem a confirmação de um lugar certo de trabalho, noutras eram mesmo
postos fora do país, noutras eram aguardados ou guiados por
Portugueses ou Espanhóis para os levarem às autoridades francesas, as quais
lhes davam um salvo-conduto até chegarem ao local de trabalho, que
muitas vezes era arranjado previamente por esses intermediários, a troco de
mais uns milhares de escudos ou francos, e assim chegavam ao
desejado destino depois de uma aventurosa viagem de fuga à miséria e à guerra
colonial em África.
No dia
seguinte logo fiz uma barraca, no outro dia, o Zé Júlio da
Arrifana veio-me a buscar para o patrão. A partir daí não estive um dia
sem trabalho na França. Oito dias depois de dormir na barraca, o patrão logo me
arranjou alojamento.
Uma vez chegados ao local de trabalho, uma dura vida nos
esperava. Alguns ficaram em Saint Denis mas,
nós os de Argoselo, combinámos a levarem-nos a Paris. As primeiras dificuldades; a língua, o
isolamento a que éramos forçados, trabalho duro na agricultura, construção
civil ou obras publicas, como pontes, tuneis, estradas, caminhos de ferro, eram
os trabalhos que esperavam o emigrante português, explorado ao máximo pelos
patrões.
A francesa onde
trabalhava, arranjou-me um terreno onde construí barracas que depois eu as
alugava a outros. Mais tarde acabaram com as barracas. A mim deram-me 200
francos para deixar as barracas e ir para um apartamento. Ganhava 96 francos e
pagava 60 de renda. Bastava assinar em como tínhamos alojamento, logo nos
passavam o «rapicé» que era o primeiro documento, antes
da «carta de séjour». O consulado dava o salvo-conduto.
Assim passavam os primeiros anos, trabalhando horas a mais do que o normal,
muitos vivendo nas piores condições em velhos alpendres, carruagens etc,
fazendo o próprio comer e lavando a própria roupa. Esta fonte
de mão de obra barata interessava aos franceses.
E os emigrantes da França que conheçam as dificuldades e perigos
desta vida, saberão bem avaliar isso ...
ao fim e ao cabo acabarão por reconhecer que não foram mal empregados os
milhares de escudos dados ao «passadores» pois sem eles era impossível a muitos
emigrantes atingir o que desejavam, para obter uma vida melhor e muitos não
estariam hoje na situação desafogada em que se encontram.
Enfim, há uns anos para cá, a forma é já mais digna de tratar um cidadão,
pelo menos já não é necessário fugir como que um ladrão ou criminoso ou
misturado com os animais. Seria necessário entrar em detalhes pormenores para
se descrever o que os primeiros emigrantes passaram, desde as viagens do «salto»
até as condições de trabalho e viver o que tiveram que enfrentar.
Entretanto as aldeias deste Portugal do interior ou melhor rural, porque
nem só do interior emigraram, iam-se tornando despovoadas, como que povoações
fantasmas e quem as percorre apenas vê uma ou outra pessoa a
maioria já de idade avançada, espreitando uma réstia de sol.
Ilídio Bartolomeu